Sempre me vem à memória uma lembrança muito antiga, que é de
quando meu pai e minha mãe vestiam suas melhores roupas para votar. Curioso, eu
perguntava ao papai o que é ‘votar’. Ele me explicava, dizendo que era um
direito e um dever do cidadão etc. Eu, sem saber o significado do substantivo
‘cidadão, desisti também do verbo ‘votar’.
A eleição acontecia festivamente em Córrego Preto, um bairro rural
de minha cidade. O nome oficial do logradouro é ‘Vilas Boas’, mas, por razões
bastante particulares, prefiro o nome antigo. Ou ainda, como os velhos
camponeses de antanho, costumo me referir carinhosamente àquele arraial como Corgo Preto.
Depois de crescido, comecei a entender mais ou menos como funciona
a tal “votação” com a qual papai muito se entusiasmava. Descobri que na nossa
região havia dois ‘partidos’: o ‘PR’, tendo como chefe o Zezito Marta, e o
‘PSD’, de Antônio Arruda. Lá em casa, todos éramos “Zezito”; já na casa de meu
avô paterno, todos eram “Antônio Arruda”. Havia certa rivalidade entre meu pai
e seus familiares, contudo sem qualquer malquerença. Na verdade, essas duas
siglas existiam apenas na cabeça do povo. Isso porque o regime militar
extinguira todos os partidos políticos, permitindo apenas a Arena (Aliança
Renovadora Nacional) – do governo; e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro) –
um partido de oposição consentida pelo regime. Na nossa cidade havia apenas a
‘Arena’, mas nas sublegendas ‘Arena-1’ e ‘Arena-2’. Quem era do ‘PSD’ votava na
Arena-1; já os partidários do ‘PR’, como meu pai, votavam na Arena-2.
Lembro também que nas caravanas e comícios, o grito de guerra da
turma do “PSD” era “Um, dois, três. É cento e dezesseis!” – uma
referência à diferença de votos que houve numa eleição vitoriosa do Antônio
Arruda. Mas, nas eleições seguintes, o “PR” elegeu Zezito Marta com uma
vantagem de nove votos, e a turma do “Arruda” passou a denominar o inocente
‘número nove’ de “traíra”.
Eu gostava daquela “festança eleitoral” e torcia pelo candidato de
meu pai. O irmão mais velho também se empolgava, e certa vez ele pegou um
carvão e escreveu “PR” na porta do paiol de casa. Papai chegou, viu aquilo, não
gostou e mandou apagar. Embora meu pai fosse daquele “partido”, ele nunca
permitiu politicagem na nossa casa, como também nunca acompanhou caravanas nem
frequentava comícios. Todavia, eu me lembro de estar com ele numa reunião com
muita gente. Um homem de terno subiu numa caminhonete e desandou a falar, até
cansar. Não entendi nada, mas, como todos aplaudiram, também bati palmas para o
falastrão.
Noutra ocasião, fui à comemoração da vitória de alguém e havia
churrasco, algo que eu conhecia só de figuras em livros. Chegando -- eu
estava com meu pai e algum irmão --, fomos para a área onde se assavam as
carnes, mas lá havia muito mais gente do que comida. A custo, papai conseguiu
uma vara de bambu com uns pedaços de carne espetados nela. Foi uma decepção
para mim o tal ‘churrasco’, que eu pensava ser algo mais apetitoso. A carne
usada deve ter sido de segunda ou de terceira.
Lembro com saudades daqueles tempos no meu velho Corgo Preto.
Embora vivêssemos sob uma ditadura, o povo parecia ser mais civilizado. Ainda
quero entender o que está acontecendo com a gente.
FILIPE
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