Conheci a dona Laura já beirando
seus ‘noventa’ no longínquo passado quando me mudei para esta cidade. Ela
estava sempre bem ornada com um vestido ramado, de cores fortes. E seus cabelos,
muito brancos, acomodavam-se sob uma presilha dourada. Dona Laura me parecia
uma mulher feliz, porque piedosa e elevada, embora tivesse lá seus perrengues
de saúde e de finanças.
Laurinha, como eu ousava
chamá-la, morava numa modesta casa ajardinada com seu filho Laercio, um rapaz já
de “muitos dias” com quem pouco conversei, porque estava sempre meio
“escondido”. Meus encontros com ela se
davam regularmente aos sábados, à noitinha, quando voltávamos da igreja que
frequentávamos num bairro vizinho. Conosco também vinha uma falante dona Mariinha,
que era meio ‘reclamona’. Dona Laura
tinha paciência com a amiga, mas não lhe poupava umas reprimendas de vez em
quando. “A Maria é boba, devia parar de reclamar, porque ela é a dona da casa e
não tem que viver humilhada”. Quase sempre, dona Mariinha vinha falando que não
tinha almoçado direito e que nem ia jantar. Dona Laura, que sempre fazia uma
sopa antes de sair, dizia-lhe: “Vamos lá em casa. Fiz uma sopa e você pode
tomar à vontade”. E a dona Maria ia
mesmo. Mas depois desconfiei que seus queixumes fossem por conta da senilidade,
que avançava. Não passou muito tempo, dona Maria partiu.
Por algumas vezes fui à casa da
amiga Laura. Seu quintal era pequeno, cimentado e ainda assim bucólico. Havia nele
vários pés de frutas dentro de latas de tinta, que o Laercio plantava para presentear amigos. Um pequeno abacateiro chegou a frutificar dentro
da lata. Havia também um cercado com alguns bichinhos e um deles era uma pata
de nome ‘Chico’. “Mas por que Chico, dona Laura?” “Eu pensei que fosse macho,
mas ‘ele’ começou a botar e eu continuei chamando de Chico”. Na frente da casa,
um canto do jardim era sombreado por um frondoso pé de jabuticaba, cujas frutas
dona Laura fazia questão de colher e levar à minha casa.
No Natal de 2007, fui convidado
para o almoço. Cheguei ao meio-dia e a dona Laura estava toda animada. De
avental branco, cozinhava, lavava e servia aos filhos, netos etc. Depois desta
visita, fiquei um tempo sem vê-la, até que um dia reapareci. Seu filho Laercio
abriu a porta e perguntei pela mãe. “Está na cozinha. Entre”. Entrei e a
encontrei sentada numa cadeira. Estava bem debilitada, magrinha. Mas me
reconheceu, abraçou-me e me beijou, como sempre fazia. No fogão, estava um
Laercio meio atrapalhado com as panelas. Lembro que fritava peixes e os punha
num prato. Eram uns peixinhos pequenos, tipo sardinha, que ficavam meio morenos
de tão torrados. Pensei: “Dona Laura não vai conseguir comer isso, porque já
reclama de não ter fome”. Conversamos um pouco, ela elogiou o filho, dizendo estar
muito bem cuidada por ele etc., e fizemos uma prece. Após esse encontro, nunca
mais pude vê-la. Dona Laura partiu logo
depois.
Nesta semana, o obituário trouxe
o nome de Laercio Favaro. Bateu-me uma interrogação seguida de uma exclamação. Dona
Laura já tem a companhia de seu filho na eternidade!
FILIPE
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