sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

DONA LAURA


Conheci a dona Laura já beirando seus ‘noventa’ no longínquo passado quando me mudei para esta cidade. Ela estava sempre bem ornada com um vestido ramado, de cores fortes. E seus cabelos, muito brancos, acomodavam-se sob uma presilha dourada. Dona Laura me parecia uma mulher feliz, porque piedosa e elevada, embora tivesse lá seus perrengues de saúde e de finanças.

Laurinha, como eu ousava chamá-la, morava numa modesta casa ajardinada com seu filho Laercio, um rapaz já de “muitos dias” com quem pouco conversei, porque estava sempre meio “escondido”.  Meus encontros com ela se davam regularmente aos sábados, à noitinha, quando voltávamos da igreja que frequentávamos num bairro vizinho. Conosco também vinha uma falante dona Mariinha, que era meio ‘reclamona’. Dona Laura tinha paciência com a amiga, mas não lhe poupava umas reprimendas de vez em quando. “A Maria é boba, devia parar de reclamar, porque ela é a dona da casa e não tem que viver humilhada”. Quase sempre, dona Mariinha vinha falando que não tinha almoçado direito e que nem ia jantar. Dona Laura, que sempre fazia uma sopa antes de sair, dizia-lhe: “Vamos lá em casa. Fiz uma sopa e você pode tomar à vontade”.  E a dona Maria ia mesmo. Mas depois desconfiei que seus queixumes fossem por conta da senilidade, que avançava. Não passou muito tempo, dona Maria partiu.

Por algumas vezes fui à casa da amiga Laura. Seu quintal era pequeno, cimentado e ainda assim bucólico. Havia nele vários pés de frutas dentro de latas de tinta, que o Laercio plantava para presentear amigos. Um pequeno abacateiro chegou a frutificar dentro da lata. Havia também um cercado com alguns bichinhos e um deles era uma pata de nome ‘Chico’. “Mas por que Chico, dona Laura?” “Eu pensei que fosse macho, mas ‘ele’ começou a botar e eu continuei chamando de Chico”. Na frente da casa, um canto do jardim era sombreado por um frondoso pé de jabuticaba, cujas frutas dona Laura fazia questão de colher e levar à minha casa.

No Natal de 2007, fui convidado para o almoço. Cheguei ao meio-dia e a dona Laura estava toda animada. De avental branco, cozinhava, lavava e servia aos filhos, netos etc. Depois desta visita, fiquei um tempo sem vê-la, até que um dia reapareci. Seu filho Laercio abriu a porta e perguntei pela mãe. “Está na cozinha. Entre”. Entrei e a encontrei sentada numa cadeira. Estava bem debilitada, magrinha. Mas me reconheceu, abraçou-me e me beijou, como sempre fazia. No fogão, estava um Laercio meio atrapalhado com as panelas. Lembro que fritava peixes e os punha num prato. Eram uns peixinhos pequenos, tipo sardinha, que ficavam meio morenos de tão torrados. Pensei: “Dona Laura não vai conseguir comer isso, porque já reclama de não ter fome”. Conversamos um pouco, ela elogiou o filho, dizendo estar muito bem cuidada por ele etc., e fizemos uma prece. Após esse encontro, nunca mais pude vê-la.  Dona Laura partiu logo depois.

Nesta semana, o obituário trouxe o nome de Laercio Favaro. Bateu-me uma interrogação seguida de uma exclamação. Dona Laura já tem a companhia de seu filho na eternidade!

FILIPE

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