sexta-feira, 22 de novembro de 2019

O SONO INTERROMPIDO


A viagem foi tranquila apesar do cansaço que se intensifica com o avançar da idade. Chegando, no meio de um dia nublado e quente, encontrei papai feliz pela visita deste filho. Mamãe, como sempre, fica alegre com a presença de seus inúmeros filhos, mas parece um pouco atrapalhada com a movimentação de tantas chegadas e despedidas.

Desde que mamãe se acidentou e ficou internada por uma semana, muita coisa mudou em sua vida. Seu pequeno “latifúndio” – antes composto de algumas cômodas além da cama e de uma varandinha onde tomava sol todas as manhãs – foi reduzido a um leito hospitalar. Nele mamãe espera pelas refeições, recebe visitas e os cuidados de sua filha mais velha, a quem ouso nominar carinhosamente de “Mana Véia”.

Durante dois dias pude presenciar o labor dessa irmã, que, de vez em quando, é auxiliada por uma filha ou por nossa irmã caçula. Mas é a ‘Mana Véia’ quem fica “vinte e quatro horas” à disposição de nossos pais. Observando a maneira tão singular com que essa irmã lida com nossa mãe, veio-me à memória uns fragmentos muito antigos. Num passado distante, devido à enfermidade de nossa mãe, ela cuidou dos irmãozinhos; depois, com a mesma dedicação e competência, criou seus filhos; agora, esmera-se nos cuidados de nossos velhinhos: papai fez 89, e mamãe, enferma, tem 80.

Na primeira noite de minha visita, fomos dormir cedo: eu, por cansaço da viagem; meu pai, por costume e sabedoria. Tanto que um de seus lemas é: “A noite foi feita para a gente dormir!” E por isso, quero abrir um parêntese.

Certa vez, estando eu na companhia de dois irmãos, engatamos um bate-papo que se estendeu noite adentro. Lá pelas tantas, meu pai acendeu a luz e veio ao nosso quarto, dizendo: “Vocês não dormem?... Quem não dorme morre cedo. Meu tio (...) morreu com 56 anos porque vivia nos bailes. Eu já tenho quase noventa e estou aqui!” Desabafou e voltou para cama, talvez com o propósito de esticar ainda mais os seus dias. Meu irmão, zombeteiramente, me disse: “Cinquenta e seis?! O tio de meu pai morreu com a sua idade... toma cuidado!”

Voltando. Então, nessa primeira noite em que dormi cedo, acordei antes das quatro da manhã e já sem sono. Papai, que também estava acordado mandando e recebendo mensagens pelo celular, resolveu telefonar para a Mana, chamando-a com urgência. A Mana mora no terreiro de casa, mas a modernidade exige que tudo seja resolvido por telefone. E meu pai ficou moderno. Perguntei ao pai o que aconteceu. “A sua mãe está atravessada na cama e é preciso ajeitá-la”. “Não precisa chamar a Mana, pai. Eu mesmo arrumo”. Ele decidiu que deveria ser a Mana e foi enfático. Eu quis insistir, mas recuei e esperei pela irmã, que chegou um minuto depois.  A Mana, toda sonolenta, viu minha mãe tentando sair do “berço”, mas não se assustou com isso. O que a assustou de verdade, e que me fez correr ao quarto, foi outra coisa. Um escorpião embaixo da cama de meu pai. Eu, que tenho pavor de aracnídeos, tive que agir e não poderia errar. Se o bicho escapasse, como encontrá-lo depois?... Vi meu pai assustado e a irmã terrificada. A minha mãe, sem saber dos riscos, queria apenas descer do “berço” e dar uma voltinha. Dei uma chinelada... e papai deu um pulo. Pensei: “Errei”. Mas não.

Por fim, entendi por que minha irmã teria que estar ali àquelas horas. Papai tinha razão.

FILIPE

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