Hoje o Cido me pareceu tristonho.
Quando chego à sua casa, sempre ao anoitecer das sextas-feiras, bato à porta e
um pequeno sino fazendo as vezes de campainha anuncia minha presença. Então
dona Maria, sua esposa, deixa os afazeres na cozinha e vem apressadamente abrir
a porta. Do sofá, o amigo esboça um tímido sorriso enquanto uma mão trêmula
procura o controle-remoto para desligar a TV. Mas hoje a TV continuou ligada enquanto
ele permanecia cabisbaixo, quase indiferente a mim. Dona Maria pediu que ele
desligasse a televisão, mas eu pedi que a deixasse ligada.
Uma matéria num canal que desconheço
me chamou a atenção. Na tela, um repórter vai a um bairro da periferia do Rio
de Janeiro, numa encosta sob risco de desmoronamento, e entra no barraco de um
senhor idoso e doente. As paredes de lata, o vaso sanitário dividindo espaço
com o fogão, roupas penduradas. Um colchão sob o chão úmido de terra batida, um
armário com a porta despencando e uma televisão antiga, daquelas “bundudas”,
eram seus únicos bens. E nada mais havia ali além de umas caixas de papelão
entulhadas de roupas – talvez por lavar. Dona Maria fixou os olhos na TV
durante a reportagem e, ao final, exclamou: “É... A gente às vezes reclama da
vida, mas, se olhar bem, vê que tem gente vivendo muito pior, não e mesmo?...”
A vida daquele casal sempre foi
dura. Ele nasceu lá pelos lados de Minas Gerais, mas em solo paulista. Ela me parece
que é mineira de Ubá, mas foi criada no norte do Paraná. Eles se conheceram nesta
cidade, aqui se casaram e trabalharam por muito tempo em fazendas da região até
que, vinte e cinco anos atrás, o Cido sofreu um grave acidente. Com afundamento
do crânio, teve que fazer várias cirurgias e ficou meses em coma. Recuperou-se parcialmente,
mas ficou “tetra”, precisando de cuidados muito especiais. Com os filhos morando
distante e sem poder pagar uma cuidadora, dona Maria é quem lhe faz de tudo. Ultimamente,
porém, ela também apresenta problemas de saúde e já tem dificuldade de cuidar
do marido sozinha.
Foi então que eu soube por que o
meu amigo estava aflito. Enquanto eu conversava com a dona Maria sobre isso e
outros assuntos mais prosaicos como: “Está chovendo, graças a Deus. Que bom.
Agora deve dar uma esfriada, né?...”, o Cido acenava para nós, como sempre faz:
a mão esquerda levemente espalmada (a outra não tem movimento) apontava na
minha direção e, ao mesmo tempo, olhava para esposa, pedindo-lhe que o traduzisse.
Olhei para ela e nem foi preciso perguntar. “Ele está falando que vamos mudar
daqui.” “Vocês vão mudar?! Quando?...” “Amanhã!” “Para onde?” “Vamos lá pro São
Dimas! Vou morar perto da minha filha pra ela poder visitar o pai mais vezes.
Aqui é muito longe e ela quase não vem.” “Que pena... Não vou poder visitar
mais vocês.” Ao ouvir isso, o meu amigo começou a chorar. Mas remendei a tempo
o estrago e disse: “Não vou poder visitar todas as semanas! Mas pode deixar, seu
Cido, que vou continuar vendo você, tá bom?”. Ele sorriu.
FILIPE
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