As lembranças mais antigas que tenho de meu avô Aurélio evocam um homem
portando um terço e uma lamparina. Vovô gostava muito de rezar e de andar à
noite, mas parecia não apreciar a escuridão. Em sua casa havia várias dessas
lamparinas a querosene. Umas eram de vidro, outras de lata, todas artesanais. No
seu quarto havia uma que ficava bem no alto da parede e queimava à noite toda.
Sua luz tênue, que mal iluminava em derredor, era suficiente para que não se
tropeçasse em algo ao entrar, ou que se acertasse o
rumo da porta, caso se desejasse sair no meio da noite.
Quando nossos pais permitiam que pernoitássemos naquela casa, era no quarto do avô que
dormíamos. Vovô nos cedia a cama – enorme, para nós tão
pequenos – e nela deitávamos, três ou quatro meninos. Ele, minimalista
como sempre, aconchegava-se num canto do quarto, numa
esteira qualquer. Vovô era de pouca conversa. Suas frases
eram curtas e quase sempre interrogativas. Perguntava amiúde
pelo “compadre”, no caso o meu pai, mas quase sempre não passava disso. Na sua
casa, era ele quem fazia as compras na venda. Também
abastecia os dois grandes potes de barro com água da mina.
Para tanto, sempre observava o nível da água. Quando achava necessário, pegava
dois baldes e rumava para a fonte, uma mina distante, a
centenas de metros da casa.
Certa vez, isto se deu em meados de
1968, fiquei gravemente enfermo. Papai lutava para sustentar a família e encontrou dificuldade para dar cabo de minha doença. Vovô
Aurélio esteve em nossa casa naqueles dias para fazer algum
serviço para minha mãe. Talvez socasse arroz no pilão, ou coisa assim.
Lembro-me de que ele constantemente cantarolava uma música.
Essa música, eu soube bem depois, é de Roberto Carlos. Quem
é jovem, talvez não saiba, mas esse artista já foi bom. A música tem uma letra
assim: “Olha, dentro dos meus olhos, como estou chorando, eu
chorei por ti, por ti, por ti. Olha, que saudade imensa
(...)”. Eu não sabia, mas vovô talvez estivesse vivendo o começo de um drama que
o acompanharia até o fim. Por isso, cantava aquela
música.
Passados uns dias, baixei hospital.
Quem tomou a iniciativa de me internar foi o vovô Sebastião, meu avô paterno. Este, quando me viu naquele estado, chamou papai e
acertaram de me levar. Lembro até hoje do rangido das
botinas novas do vovô durante a caminhada até a estrada, onde a ambulância
me apanharia. Vovô Sebastião ficou e papai me levou até o
hospital. Como foi triste aquilo! Papai, depois de conversar
com aquela gente vestida de branco, teve que partir e me deixou sozinho numa
enfermaria. Eu chorava muito, mas de nada adiantou. Depois
tive por companheiro um recém-nascido de nome José Marto.
Fiquei contente com a companhia, mas foi por pouco tempo. Na noite seguinte,
sem saber, velei seu corpinho.
Certo dia,
estando meio sonolento, ouvi um chamado. Era o vovô Aurélio que viera me
visitar. Que alegria para mim, recebê-lo! E vovô não chegou
de mãos abanando não. Trouxera-me dois pacotes de biscoitos
de polvilho. Que delícia! Nunca havia comido aquilo e vovô me deu com fartura.
Então ele ficou por ali calado, olhou-me por algum tempo,
abençoou-me e saiu. Tive muita vontade de acompanhá-lo, mas não podia. Esta foi a única visita que recebi naquele
hospital.
Uma das últimas conversas que tive
com vovô Aurélio, foi quando ele já estava bem doente, prestes a falecer. Tentei rezar com ele o Terço, mas, já sem forças,
faltou-lhe ânimo para isso. Dele, além dessas e de outras
muitas recordações, herdei a cama. De cabiúna, esse pequeno móvel pertenceu
ao seu pai, meu bisavô Germano, e deverá ficar comigo. Nessa
cama, faleceram pai e filho (este avô). Quiçá o neto.
Vovô Aurélio foi um homem religioso.
Catequizou sua primogênita, minha mãe, e nos deixou um rico
legado de devoção e desprendimento. Marcado pela doença, esteve várias vezes
internado num hospital psiquiátrico de Barbacena. Nessas
longas e sofridas internações, talvez não tenha recebido uma única visita. E muito menos um pacotinho de biscoito. Ah, vovô Aurélio,
somente agora entendi por que me visitou. Muito obrigado,
vovô!
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O texto acima é uma pequena
contribuição ao ensaio autobiográfico que papai escreveu. Seu livro será lançado
neste dia 15, em Vilas Boas, nosso rincão natal.
FILIPE
Convido os leitores que se aventuram por este blog, que visitem o "blogdofilipemoura".
ResponderExcluirLá há um intenso debate na caixa de comentários sobre a postagem "A marcha dos insensatos".
Boa leitura!