13 de junho de 1958
“...Vesti as crianças e eles foram para a escola. Eu fui catar papel. No frigorífico vi
uma mocinha comendo salsichas do lixo.
— Você pode arranjar um emprego e levar
uma vida reajustada.
Ela perguntou-me se catar papel ganha dinheiro.
Afirmei que sim. Ela disse-me que quer um serviço para andar bem bonita. Ela
está com 15 anos. Época que achamos o mundo maravilhoso. Época em que a rosa
desabrocha. Depois vai caindo pétala por pétala e surgem os espinhos. Uns
cançam da vida, suicidam. Outros passam a roubar. (...) Olhei o rosto da
mocinha. Está com boqueira.
...Os preços aumentam igual as ondas do mar.
Cada qual mais forte. Quem luta com as ondas? Só os tubarões. Mas o tubarão é
mais feroz que o racional. É o terrestre. É o atacadista.
A lentilha está a 100 cruzeiros o quilo. Um
fato que alegrou-me imensamente. Eu dancei, cantei e pulei. E agradeci o rei
dos juízes que é Deus. Foi em janeiro quando as águas invadiu os armazens e
estragou os alimentos. Bem feito. Em vez de vender barato, guarda esperando
alta dos preços: Vi os homens jogar sacos de arroz dentro do rio. Bacalhau,
queijo, doces. Fiquei com inveja dos peixes que não trabalham e passam bem.
Hoje estou lendo. E li o crime do Deputado do Recife,
Nei Maranhão. (...) li o jornal para as mulheres da favela ouvir. Elas ficaram
revoltadas e começaram a chingar o assassino. E lhe rogar praga. Eu já observei
que as pragas dos favelados pegam.
... Os bons eu enalteço, os maus eu critico.
Devo reservar as palavras suaves para os operários, para os mendigos, que são
escravos da miséria.”
Acima
está um fragmento de “QUARTO de DESPEJO – Diário de uma favelada”, obra icônica
da mineira de Sacramento, Carolina Maria de Jesus, publicada por Audálio Dantas
em 1960. O editor teve a sensibilidade de manter a grafia original da autora,
que estudou apenas até o segundo ano primário.
Li “Quarto
de Despejo” nesses dias e me veio uma forte lembrança dos tempos em que eu trabalhava
nas Lojas Americanas de Juiz de Fora, lá no começo dos anos oitenta. Todos os
dias, caminhões carregados encostavam no calçadão e sua mercadoria subia para o
depósito por um elevador. À noite, as caixas de papelão desciam para a calçada
e uma senhora com suas crianças pegavam aquele material para vender. Na calçada havia
também uma caixa plástica onde se depositavam restos de alimentos do
restaurante da loja. Bom, não vou descrever essa cena.
Carolina Maria de Jesus voltou a ser notícia nesta semana. Desta vez, um jornal publicou matéria em que três de suas netas vivem num “Quarto de Despejo – 2”, assim denominado por elas próprias, tal a penúria em que se encontram.
Termino com Chico Buarque:
“Carolina
Nos seus olhos fundos
Guarda tanta dor
A dor de todo esse mundo”
FILIPE
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