Ele acaba de completar ‘cinquenta anos’! Ainda ontem esse mano era um rapazinho franzino, que furava buracos, amarrava ferragens, levantava muros e paredes, armava laje, cimentava, rebocava e azulejava. Com apenas dezoito anos ele ergueu a minha casa!
Olha, que tempos foram aqueles!...
Era finalzinho dos anos oitenta e começo dos noventa. A inflação roía nossas economias,
tornando difícil um planejamento. Mas, com o mano ao meu lado, fui em frente. Trabalhando
quase sempre sozinho, ele fazia a argamassa, punha na lata e subia no andaime
onde despejava a massa no caixote. Depois descia, ajeitava a masseira e
retornava ao andaime com a colher de pedreiro, prumo e nível. E assim, as
paredes de alvenaria foram erguidas, colunas concretadas, laje batida, telhado
posto.
Por tempos, levantando muito cedo,
ele atravessava parte da cidade, percorria alguns quilômetros, até chegar à
obra. A comida era bem precária: arroz, feijão, carne cozida e talvez uma
salada, ou nem isso. O cardápio, que eu mesmo preparava, não variava nunca. Mas
ele talvez não saiba que a minha comida era ainda mais pobre. A carne eu
reservava a ele, enquanto eu me virava com um ovo cozido.
O interessante é que ele nunca
pediu aumento no ordenado. Combinamos um valor no começo da obra e depois as
coisas foram se ajustando. Certa vez eu lhe propus pagar o valor de ‘dois sacos
de cimento’ como diária. Ele se animou, dizendo que “o Chimba sempre falou que
o pedreiro deve ganhar ‘dois sacos de cimento’, e que o servente pode ganhar ‘um
saco’”. Fiquei contente, porque não foi preciso mais fazer muitas contas. Bastava
contar os dias de trabalho e ver o preço do saco de cimento que eu pegava lá no
Zé da Roleta. Então, quando eu ia acertar, ele ia nos seus guardados e pegava
um pedaço de papel onde estava sua contabilidade. Nesse papel, que não por
acaso era de saco de cimento, ele apontava os dias trabalhados e eu pagava.
É importante explicar uma coisa.
Naquele tempo, a Votorantim monopolizava a produção de cimento e punha o preço
que lhe conviesse, chegando a sonegar o produto para encarecê-lo. Mas isso
mudou depois que o presidente Itamar Franco importou cimento da Grécia, fazendo
o preço cair. Hoje, ainda que o cimento seja caro, o preço não se compara ao
que já fora.
Mas o mano não perdia tempo mesmo.
Trabalhava o dia todo e à noite ainda ia para a escola estudar aquilo que era
conhecido como ‘primeiro grau’; concluído esse, fez o segundo grau. Lembro dele
naquela escola, onde eu também lecionei. Nesse tempo, sua vida tinha melhorado,
porque já estava trabalhando na indústria. Ele chegava timidamente e se dirigia
a um professor para pegar a ficha de estudos. Não sei se por coincidência ou sorte
dele, mas eu nunca o atendi.
Econômico, quase não gastava o
que ganhava. Na minha memória ficou uma domingueira calça jeans que ele sempre usava.
Nela tinha um desenho de um vampiro e a palavra “Vamp” alusivo a uma novela. Acho
que ele tinha outras calças, mas só me lembro dele com essa.
Hoje o "pedreirinho" já não tem dessas
preocupações. Estabilizado, oferece sem medir esforços todo conforto à sua
família composta de esposa e três filhos – o mais velho, um futuro economista.
O que mais me impressiona nesse mano,
de poucas palavras e humor cáustico, é sua sabedoria. Dentre os onze irmãos, talvez ele seja a voz
mais sensata, ponderada e esperada quando surge algum impasse entre nós.
FILIPE
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