No começo dos anos oitenta eu prestava
serviço militar numa unidade de cavalaria em Juiz de Fora. O presidente da
República era João Figueiredo, um general cavalariano de maus modos, tosco, mas
nada que se compare ao “Cavalão” que hoje está no posto. Embora vivêssemos os
estertores do regime militar, a atmosfera política era bastante tóxica.
Gilberto Gil, Caetano Veloso entre outros eram vistos com desconfiança, e Chico
Buarque foi tachado de subversivo por um tenente numa palestra.
Havia naquela unidade militar uma
sala em cuja porta estava afixada uma plaquinha em que se lia “xadrêz” – assim
mesmo: com o desnecessário acento circunflexo. Eu tinha curiosidade de entrar
naquela sala, queria ver como era a famosa ‘’cadeia’’. Um dia, na companhia de
um colega, entrei lá para fazer alguns reparos como reboco e pintura. Passamos
pela porta com a tal plaquinha e à esquerda havia outra porta, de aço e pesadíssima,
que dava acesso ao ambiente. Dentro da cela havia outra salinha, muito estreita
e escura, denominada solitária, e onde ficava preso político. Como eu não sabia
o que era ‘preso político’, não me importei com a tal ‘solitária’ e segui fazendo
meu serviço com o soldado Luís Carlos. Rebocamos e começamos a pintar a cela:
eu passava cal e ele tinta. Não sei por quê, mas nos desentendemos e começamos
uma guerra de tintas, fazendo uma enorme lambança. Quando vi que eu estava perdendo
a parada, porque ele me jogava tinta enquanto eu atacava de cal, tentei pegar aquela
tinta e jogar na cabeça dele. Com os olhos empapados, abaixei e tateei o balde.
Depois vi que não era balde, mas o coturno de alguém. “O que é que vocês estão
fazendo?!” Era o major, comandante da unidade, que nos abordou. Não sei de meu
colega, mas eu fiquei gelado e sem ter como disfarçar, pensei: “Pintei essa
cadeia pra eu ficar nela!...” O major, porém, não me puniu. Disse alguma coisa
em desaprovação, sorriu e saiu. Um caso raro de militar sensível, que declinou
de seu poder quase imperial, poupando dois soldados bagunceiros, mas
trabalhadores. Caso fosse o subcomandante, a “solitária” teria sido nosso
destino.
A cadeia, depois de reformada,
foi abrigo do protagonista desta crônica: o soldado Melquíades. Esse caboclinho,
que veio lá dos cafundós, deveria prestar serviço militar na minha unidade, mas
ele não se apresentou. Então uma ‘patrulha’ foi encarregada de encontrá-lo,
onde quer que estivesse, e trazê-lo ao quartel, observando a máxima: “ordem
dada, missão cumprida”. Essa missão, no entanto, estava difícil de ser cumprida
porque o Melquíades embrenhara-se no mato e ninguém o achava. Foram várias tentativas
para, enfim, escoltarem-no e o conduzirem àquele xadrez. Em geral, presos devem ficar isolados, mas eu
visitei o Melquíades mais de uma vez. Quando o vi, fiquei pasmo. Mal vestido,
talvez sujo – ele estava de pé, com os olhos parados, parecendo um espectro. Chamei-o
pelo nome e, embora tentasse evitar contato visual comigo, ele atendeu. Conversamos
um pouco. Ele falou de seus dramas, de sua família etc. Eu perguntei se ele
sabia rezar. Não, ele não sabia rezar. Então eu escrevi o ‘pai-nosso’ num papel
e ele aceitou, mas acho que ele não sabia ler também. Passados uns dias,
Melquíades foi expulso do Exército e nunca mais o vi.
FILIPE
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