sábado, 27 de abril de 2024

CESARINHO

 


Em setembro último, estando na casa de um velho conhecido, encontrei-me com o Cesarinho. Assim que nos vimos, ele me reconheceu e perguntou se eu me lembrava dele. “Não, eu não me lembro de você!”, respondi envergonhado. Perplexo, ele bradou: “Sou o Cesarinho, rapaz! Já se esqueceu de mim?!” Fiquei embasbacado. Afinal, muitas décadas se passaram sem que eu visse esse meu colega de escola, com quem estudei o ‘quarto ano primário’. Acontece que os anos costumam fazer estragos no corpo e na memória da gente, o que nos deixa meio embaraçados quando reencontramos amigos de infância – e esse é o meu caso.

A conversa que eu teria com o outro senhor, a quem visitava, migrou para o Cesarinho. Bom de prosa, ele contou muitos casos naquela curta meia hora de bate-papo. Eu também rememorei com ele alguma coisa bastante pitoresca, de que ele se lembrou com impressionante nitidez.

“Cesarinho, você se lembra daquela vez que eu achei na estrada uma chave de mecânico e que troquei com você por um pedaço de lápis? Levei um baita prejuízo, né não?...” Ele deu uma gargalhada e me disse que também não ficou no lucro. “Aquela chave eu acabei trocando por fósforos!”, ele disse e continuou. “Eu estava indo pra roça e não tinha como acender o cigarro. Então peguei aquela chave ofereci à minha irmã em troca de uma caixa de fósforos, que nem estava cheia, mas era o que eu teria para o momento. E assim se foi a chave, que deveria valer nem sei quantas caixas de fósforos...”

A história da chave trocada pela caixa de fósforos eu já sabia, não pelo Cesarinho, mas por um irmão meu.  Numa conversa entre os dois, esse irmão tocou no assunto e o amigo contou o ocorrido, o que agora foi confirmado.

Outra história, talvez ainda mais interessante, não foi abordada nesse nosso reencontro. Depois que levei aquela “manta” (expressão usada por meu irmão mais velho pra dizer que eu ‘me ferrei” com a barganha), fizemos outra 'breganha', que será descrita abaixo.

Certa vez, no Dia das Crianças, cada aluno ganhou uma bola. Eu voltava pra casa todo alegre com meu presente, mas gostei mesmo foi de um isqueiro que o Cesarinho mostrou. Então propus a ele uma troca. O amigo topou, levando a minha bola e deixando comigo o isqueiro. Agora eu estava ainda mais feliz com aquele trequinho. Era só dar uma dedada no rebolo, que a faísca gerava uma pequena labareda. No entanto, minha alegria acabou assim que cheguei em casa. O isqueiro, que era a gasolina, foi reabastecido com querosene. Resultado: ele não acendia mais. Por mais que tentasse, nada! Então, já com a amarga lembrança daquela ‘chave trocada por um toquinho de lápis’, decidi procurar o amigo pra resgatar a bola. E lá fui eu à casa do Cesarinho.

Chegando lá, a mãe dele me atendeu e disse que o filho estava no roçado. Expliquei meu drama e o arrependimento por trocar a bola pelo isqueiro, e que eu queria destrocar. Ela ficou reticente, mas me compreendeu e permitiu que eu entrasse pra procurar a bola no quarto do filho. Entrei e não vi nada. Ela sugeriu que eu olhasse embaixo da cama. Sim, a ‘minha’ bola estava repousando embaixo da cama do Cesarinho. Deitei no chão, estiquei-me a fim de alcançá-la e lhe dei um toque. A bola me obedeceu, batendo na parede e voltando feliz para as minhas mãos.

No dia seguinte, no caminho da escola, um furioso Cesarinho me chamou de cotieiro, mas nem liguei. Somente depois pude saber que “cotieiro” é quem descumpre a palavra, desfazendo negócios. Então admiti que fui cotieiro, mas prometi pra mim mesmo ser aquela a única vez em que eu faltaria com a palavra.

O tempo foi passando, o Cesarinho me perdoou, terminamos o primário e continuamos amigos. O tempo deu mais umas cambalhotas e, após meio século, nos reencontramos.  O rapaz queria conversar mais e me convidou pra ir à sua casa. Eu prometi que iria, mas não deu tempo. No dia onze deste mês de abril, enquanto trabalhava, o meu amigo de infância se despediu.

Muitas são as histórias e estórias que eu gostaria de ouvir, mas somente o Cesarinho poderia contar.

FILIPE


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