“E o ‘Pica-Fumo’, é bacana com
vocês? Cadê ele?”, perguntou-me o soldado Costa numa tarde do ano de 1980. Eu tirava
guarda no pátio das viaturas do Esquadrão de Cavalaria, enquanto ele estava
numa janela do Quartel-General, um prédio vizinho. Não sabia que seu pai, meu
chefe de seção e que foi carinhosamente chamado de ‘Pica-Fumo’, era esposo de
uma prima de minha mãe. A partir desse brevíssimo diálogo, estreitei laços com aquela
família e passei a integrá-la. Mas o Costa, embora simpático, era de poucas
palavras, e nas vezes em que fui à sua casa, pouco conversávamos. Sempre havia
muita gente por lá e eu me ocupava mais com os assuntos da mãe, que gostava de recordar
antigas histórias de sua terra natal.
Naqueles tempos de Exército,
tentei seguir carreira militar e ingressei num curso de cabo. Durante um acampamento,
sendo designado chefe de uma patrulha de reconhecimento, eu e meus comandados
vagueamos a noite pelo matagal à procura do inimigo, mas fomos subitamente abatidos por
uma rajada de metralhadora – que na verdade era uma matraca. No balanço da
operação, um furibundo sargento me repreendeu: “Você perdeu todos os seus
homens na emboscada! Sua patrulha foi massacrada!” “Sim, senhor!”, respondi.
Mas o sargento não se contentava com o meu “sim, senhor” e repetia a cantilena.
Daí, já impaciente, retruquei: “Ninguém morreu, sargento. Eu e meus
companheiros estamos vivos, porque foi tiro de festim!” Com esta minha ousadia
verbal, o homem queria me partir ao meio, mas se conteve. Houve mais: durante
um desfile, tive mal-estar e meus olhos turvaram-se. Pedi para sair de forma,
mas o sargento não permitiu. “Soldado cai, mas não sai!”. Sai de forma e me sentei
na calçada. Recobrados os ânimos, corri e alcancei a tropa, que já ia longe.
Chegando, apresentei-me ao sargento, que me recebeu calado, mas com “cara de cão”.
E assim, a “derrota militar” no
acampamento, a rebeldia no desfile e as soníferas aulas teóricas depois do
almoço selaram minha desventura. Para sorte minha ou da corporação, pus fim num
alentado sonho verde-oliva de “homem das armas”.
Mas o Costa, que era um sujeito sabido,
se deu bem. Com pouco tempo ele se tornou cabo-enfermeiro e só não avançou na
carreira porque não quis. Era competente e poderia ter chegado a oficial, como
seu pai.
Numa daquelas visitas à família
do Costa, conheci seu irmão. Era um sujeito magro, cabeludo, barbudo – um riponga. Com ele, aprendi a tomar
chimarrão, ouvir MPB e apreciar literatura. A música, em volume baixo, temperava
sua prosa, que também tinha lá uns tons melódicos. Tornei-me amigo desse
magricela e passei a ter menos contato com o Costa.
O tempo passou e nas muitas vezes
que voltei àquela casa, nunca mais vi o Costa, que voltou a ser Sérgio, passando
a ter outras ocupações: deixara a farda, casara e cuidava agora da família.
A notícia de sua morte foi um grande baque. Não
sabendo de sua enfermidade, não rezei pela sua recuperação. Descanse em paz,
Sérgio! Para mim você continua sendo o bom “soldado Costa”.
FILIPE
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