sexta-feira, 24 de novembro de 2017

O TRONCO DE TAJUBA



“Chegou!”, disse ele às seis da manhã, dando-me um caudaloso abraço. “Nunca pensei que eu fosse chegar a esta idade, mas fazer ‘oitenta e sete anos’, andando... só tenho que agradecer a Deus!”, completou o alegroso aniversariante.

O dia foi intenso. Cedinho, já estava no feice, onde as felicitações se acumulavam, e a cada mensagem ele respondia com particular atenção. O telefone também tocava. Ao som do celular, largava o notebook e corria para o quarto, onde o aparelhinho não lhe dava sossego. Eram filhos, sobrinhos, parentes, amigos, admiradores.

Garboso de sua saúde, papai diz: “Eu sempre fui perrengue, muito doente, mas Deus me concedeu uma velhice tranquila. Olha, eu não tomo nenhum remédio e durmo a noite inteirinha!... Isso é graça!” Mamãe, porém, tem sido objeto de suas preocupações. Ela está bastante fragilizada – mais pelas enfermidades e menos pela idade, que já lhe pesa.

Se o papai tem o seu celular, mamãe tem o dela também. Todos os dias, às sete da manhã e às sete da noite, o ‘telefone’ da mamãe toca. E toca alto! Mas mamãe não atende. “Não vai atender, mãe?... Tá tocando...” Ela sorri, faz um meneio com a cabeça e diz: “Sei lá que é isso?...” Nisto, o pai chega a passos largos: é hora dos remédios. Papai, quando não está no fogão, faz palavras cruzadas ou fica no feice. Mas quando o telefone da mãe toca, larga tudo e vai atender a amada. Pega um copo com cloreto de magnésio, os comprimidos e entrega à esposa, que os toma agradecida e confiante.

O dia avança. Almoçamos ao meio-dia, mas não houve a sesta, porque a agenda estava cheia. Lá pelas duas da tarde, fiz um convite: subir o morro e rezar ao pé do cruzeiro, que ele aceitou de pronto. Indo, passamos na lagoa, onde plantou duas mudas de ipê ao lado de um jovem angico plantado por ele no ano passado. Fomos os dois e rezamos o Terço. Ele estava apressado, rezava rápido e eu não entendia por que a pressa. Mas papai sabe das coisas. Ao final da reza, ele disse: “Meu filho, vamos descer, porque a chuva vai nos pegar. Daquela região, vem mesmo; se fosse de lá, não viria”. Descemos rápido, e ainda assim chegamos molhadíssimos. Num dia tão especial, foi dessa forma que a dadivosa natureza quis presentear meu pai.

Embora quase nonagenário, papai está forte como um tronco de tajuba. Um dos símbolos daquele pedaço das Gerais, essa árvore tem cerne amarelo-ouro, copa robusta, frutos adocicados e espinhos inclementes. O carro de boi gemia mais dolentemente se seu eixo fosse de tajuba. Até as cercas dos sítios, que eram feitas de várias madeiras, tinham os mourões principais, os espichadores, feitos de toras de tajuba, por serem mais resistentes às intempéries.

Para nós, o pai é uma autêntica tajuba. Como um daqueles troncos da cerca, ele dá rumo aos demais mourões, os seus filhos, mantendo-nos alinhados; como árvore, cobre-nos com sua sombra protetora e tem a doçura daqueles frutos. Tem também os espinhos, que são capazes de aguilhoar o rebento traquina numa providencial correção paterna. Papai é isso mesmo: esteio, sombra, frutos, mas também espinho para imprevidentes “pés descalços”.

Uma curiosidade aritmética. Além do amor esponsal, meus pais têm uma particularidade. Num instigante valseado, os algarismos de ‘seus anos’ trocam de posição a cada onze anos. No oitavo movimento de uma série de nove, papai fez ‘87’ e mamãe tem ‘78’. Isso se explica pelo fato de a diferença de idade ser de ‘nove anos’.


FILIPE

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