sexta-feira, 3 de maio de 2013

O ADEUS DE NEGUINHA

Sua presença silenciosa e felpuda terminou. A cadelinha serelepe, que há um mês ciceroneava os enlutados visitantes pelas ruelas do cemitério, não mais existe. Foi lá que a encontrei por ocasião do sepultamento do pai de uma amiga. Durante aquele fúnebre cortejo, parecia ser ela a única “pessoa” a estar alegre. Enquanto todos caminhavam pensativos - talvez meditando sobre a particular tragédia que é o fim de cada um -, a cadelinha passeava por entre os passantes num corre-corre sem parar. Talvez nem estivesse assim tão feliz, visto que fora recentemente abandonada e, por certo, estando à procura de seu dono.

“O que não tem remédio, remediado está”, afirma um ditado meio besta. Mas o remédio para aquela cadelinha foi a adoção. Aproximei-me dela fazendo algum gesto de bom amigo e ela deixou-se cativar por mim. Embalei-a nos braços e a conduzi ao novo lar.

Por alguns dias ela me pareceu saudável e feliz. Interagia com sua nova companheira, Pituka, como se fossem velhas conhecidas. Mas as coisas não estavam muito bem com ela. Com o organismo debilitado por uma súbita enfermidade, ela se achegava a mim sempre que eu estava neste rancho a dedilhar no computador. O olhar baço, já sem curiosidade, parecia pedir ajuda como convém a todos os animaizinhos diante do perigo. Assim, aquela criaturinha se aninhava sobre meus pés, ainda quente, mas morrente.

 Por que a vida se sucumbe, às vezes tão rápida e dorida?  Por que não ser diferente como sempre queremos, principalmente para com as inocentes criaturas? Essa brevidade que assusta e apavora não nos faz melhores, mas talvez mais amargos.

Então, a cadelinha que estava bastante moribunda – uso o “bastante” como se “moribunda” já não significasse abundância de sofrimento - chorava. Neguinha chorava um choro incomum a adultos, pois os anos lhes ensinam a inutilidade da reclamação. Por isso, muitas vezes, os mais velhos padecem silentes e conformados. Somente os jovens recorrem a esse mecanismo banal e infrutífero.

Morreu Neguinha. Morrera poucos minutos antes de eu chegar. E sozinha. Sem que eu pudesse ouvi-la, assisti-la em seus estertores. Os cães nos veem como deuses. Eles nos creditam o poder sobre o vento, o sol, a chuva, a vida..., sobre tudo. E Neguinha pôde presenciar o fracasso da divindade a que recorreu.

                Na manhã seguinte, bem cedo, cavei-lhe cova rasa e nela depositei seu corpinho esquálido e gélido, na companhia de sua amiguinha Pituka. Esta, que à noite visitara-a quando finava, fez honras ao seu cadáver não arredando pé durante o sepultamento. Observava cada movimento da enxada, cada punhado de terra que descia sobre a companheira. E assim, sob uma roseira, está para sempre aquela “menininha” que fora alegre e faceira; que por instantes distraiu pessoas, arrebatando-as de suas funéreas preocupações quando a sepultar o ente querido. 

                Ainda na tarde daquele dia, chega Tokinho, um jovem “rapazinho” com cara de velho, barrigudo, ferido, faminto etc., confirmando a misteriosa transmutação da morte em vida, proporcionada pela mãe Natureza.
FILIPE

2 comentários: