Sua presença
silenciosa e felpuda terminou. A cadelinha serelepe, que há um mês ciceroneava
os enlutados visitantes pelas ruelas do cemitério, não mais existe. Foi lá que
a encontrei por ocasião do sepultamento do pai de uma amiga. Durante aquele
fúnebre cortejo, parecia ser ela a única “pessoa” a estar alegre. Enquanto
todos caminhavam pensativos - talvez meditando sobre a particular tragédia que
é o fim de cada um -, a cadelinha passeava por entre os passantes num
corre-corre sem parar. Talvez nem estivesse assim tão feliz, visto que fora recentemente
abandonada e, por certo, estando à procura de seu dono.
“O que não tem
remédio, remediado está”, afirma um ditado meio besta. Mas o remédio para
aquela cadelinha foi a adoção. Aproximei-me dela fazendo algum gesto de bom amigo
e ela deixou-se cativar por mim. Embalei-a nos braços e a conduzi ao novo lar.
Por alguns
dias ela me pareceu saudável e feliz. Interagia com sua nova companheira,
Pituka, como se fossem velhas conhecidas. Mas as coisas não estavam muito bem com
ela. Com o organismo debilitado por uma súbita enfermidade, ela se achegava a
mim sempre que eu estava neste rancho a dedilhar no computador. O olhar baço, já
sem curiosidade, parecia pedir ajuda como convém a todos os animaizinhos diante
do perigo. Assim, aquela criaturinha se aninhava sobre meus pés, ainda quente,
mas morrente.
Por que a vida se sucumbe, às vezes tão rápida
e dorida? Por que não ser diferente como
sempre queremos, principalmente para com as inocentes criaturas? Essa brevidade
que assusta e apavora não nos faz melhores, mas talvez mais amargos.
Então, a cadelinha
que estava bastante moribunda – uso o “bastante” como se “moribunda” já não
significasse abundância de sofrimento - chorava. Neguinha chorava um choro
incomum a adultos, pois os anos lhes ensinam a inutilidade da reclamação. Por
isso, muitas vezes, os mais velhos padecem silentes e conformados. Somente os
jovens recorrem a esse mecanismo banal e infrutífero.
Morreu
Neguinha. Morrera poucos minutos antes de eu chegar. E sozinha. Sem que eu pudesse
ouvi-la, assisti-la em seus estertores. Os cães nos veem como deuses. Eles nos
creditam o poder sobre o vento, o sol, a chuva, a vida..., sobre tudo. E
Neguinha pôde presenciar o fracasso da divindade a que recorreu.
Na
manhã seguinte, bem cedo, cavei-lhe cova rasa e nela depositei seu corpinho
esquálido e gélido, na companhia de sua amiguinha Pituka. Esta, que à noite visitara-a
quando finava, fez honras ao seu cadáver não arredando pé durante o
sepultamento. Observava cada movimento da enxada, cada punhado de terra que
descia sobre a companheira. E assim, sob uma roseira, está para sempre aquela “menininha”
que fora alegre e faceira; que por instantes distraiu pessoas, arrebatando-as
de suas funéreas preocupações quando a sepultar o ente querido.
Ainda
na tarde daquele dia, chega Tokinho, um jovem “rapazinho” com cara de velho, barrigudo,
ferido, faminto etc., confirmando a misteriosa transmutação da morte em vida,
proporcionada pela mãe Natureza.
FILIPE
Tão fugaz...não vou esquecer essa doce presença.
ResponderExcluirsinto muito pai por esta perda. Beijos da sua filha Mariana
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