Eu a descobri garbosa e poucos
sabem de sua existência ou por ela não se importam. Cresceu silenciosa, como
crescem as árvores, e sua copa já alcança as alturas – uma enormidade. Lembra
uma catedral gótica, quando observada a partir de seu tronco repleto de
nervuras. Antes, disputava fiapos de sol com a vizinhança galhuda e folhosa; hoje,
reina soberba por sobre a ramagem. Balançando ao vento, seus galhos, feito
longos e encurvados braços, parecem desdenhar de mim e dos arbustos – uma
insignificância rasteira cá embaixo. Brotando de sua base, sinuosas e robustas raízes
se estendem pelo solo como serpentes em fuga.
Quando criança, tinha medo das
gameleiras, pois diziam serem elas mal-assombradas. Havia uma dessas, um pouco
distante de nossa casa, enorme, gigantesca! Crescera em meio a um rochedo com
reentrâncias cavernosas, onde urubus nidificam. Morreu prematuramente, ainda uma
‘jovem’ centenária, e dela restou o caule desprovido de galhos, semelhante a um
gigantesco braço nu erguido em permanente protesto. Seu tronco repleto de catanas, como convém às
gameleiras, é de difícil acesso. Medrava
ao passar perto daquela árvore, onde havia um caminho estreito e margeado por
uma espessa vegetação. Os antigos – sempre eles! – juravam haver ‘coisas do
outro mundo’ naquelas bandas. Passando por lá à noite, só não corria de olhos
fechados pela óbvia razão de que eu erraria o caminho e adentraria o matagal.
A fama da defunta gameleira, como
a de outras tantas, não é apenas de assombração. Muita gente se beneficiou delas, pois as
‘velhas benzedeiras’ de antanho tinham o costume de ‘pregar tosse coqueluche’
no seu tronco. Diziam-se que, à meia-noite e em determinadas ocasiões, as
curandeiras acorriam àquele tronco munidas de martelo, prego e muita fé. A cada
batida, uma prece para a moléstia ficar cravada para sempre no lenho gameleiro.
Mas os camponeses não se serviam
apenas das propriedades miraculosas da gameleira a fim de pôr fim a suas
enfermidades. O termo ’gameleira’ deriva de ‘gamela’, um recipiente de madeira
que tinha múltiplas funções na casa dos caboclos. Havia gamelas para guardar ou
lavar alimentos e gamelas usadas como penicos. Meus ancestrais usaram desses
utensílios, que eram feitos a partir das tais catanas da gameleira. O gameleiro – artesão fazedor de gamelas –
cortava com machado aquela protuberância, preservando a árvore, e a esculpia de
forma a torná-la uma espécie de tigela. Na minha casa havia uma dessas gamelas
que mamãe usava para alguma coisa na cozinha.
Naquelas redondezas, muitas
gameleiras foram dizimadas por sitiantes ambiciosos ou temerosos de ‘almas-penadas’.
Não se usam mais gamelas e o que dá lucro é capim, que engorda o gado e o bolso.
Por isso, limpam os pastos de árvore ‘agourenta’ para produção de forragem.
Protegida de superstições e das mundanas
ambições, cresce formosa a minha rica gameleira. Sabedora da iniquidade humana,
resolveu fixar-se num despenhadeiro inóspito, em terreno de pouca valia, onde
apenas tatus e gambás se amoitam. Mas não somente tatus e gambás, porque também
eu, ainda que em pensamento, escondo-me naquelas brenhas para me curar do
fastio quando a vida me enfada.
FILIPE
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