sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

SEU MILTON



Uma rua estreita, muito íngreme e calçada com pedras irregulares, me leva a uma casa modesta, porém um pouco melhor do que as edificações vizinhas. O portão é aberto por um homem idoso e de poucas palavras. Estou chegando ao asilo de Maria da Fé – uma cidade no alto da Mantiqueira, no sul de Minas.

Todos os anos, em fins de dezembro, costumo visitar essa casa, de onde a cada ano uns partem e outros chegam. Faz frio em pleno verão, e os velhinhos se espalham com cobertores por quartos, corredores e salas de televisão. Um espaçoso refeitório, uma lavanderia e um pequeno quintal cimentado nos fundos são áreas liberadas para todos e abertas aos visitantes.

Ao lado de varais repletos de roupas recém-lavadas, um alambrado separa o espaço cimentado de uma pequena horta. Ali há alface, couve e almeirão em quantidade suficiente para abastecer diariamente a cozinha. Outros cultivares existem por lá, mas deles não me recordo.

Já beirando os ‘noventa’, seu Milton sempre foi o hortelão da casa. Dessa vez o encontro deitado, cochilando num banco. O rádio mal sintonizado chia e ronca a todo volume, mas seu Milton não se incomoda. Quando me vê, parece me reconhecer e se levanta para me cumprimentar. Eu puxo assunto, perguntando sobre a horta. “Não cuido mais da horta. Quem planta agora é o Joaquim. Depois que machuquei, não pude mais capinar. Pisei num danado dum buraco e quase quebrei a perna”, diz levantando a barra da calça e mostrando uma cicatriz. “Também chegou a idade e eu não posso mais fazer esse tipo de serviço”, completa.

Ouço o depoimento de seu Milton e saio dali a procura de outros internos. Sem poder levar doces nem balas, fico apenas nas expressões do tipo: “Saúde e Paz!”, ou “Que Deus abençoe e proteja!” Dá um pouco de vergonha visitar pessoas carentes, muitas delas com vontade de comer algo diferente, e nem uma balinha levar. Das outras vezes eu levava doces e nunca fui repreendido. Pelo contrário: os funcionários me agradeciam, porque eu lhes dava uma porção abundante, quase um suborno. Mas decidi cumprir a regra da casa e não levo mais nada.

No momento em que eu saio e me dirijo ao corredor que dá acesso à área externa, o seu Milton chega apressado e me chama. “Aqui, eu quero te mostrar uma coisa. Não posso mais fazer horta, mas faço isso. Vem ver.”

Ele me leva ao seu quarto e abre uma gaveta da cômoda, repleta de cigarros artesanais. Seu Milton pega saquinhos de papel, desses de padaria, recorta em pequenos retângulos e faz centenas de cigarros para os colegas. Ele diz ter feito setecentos cigarros num dia desses – que duvidei um pouco. Parece exagerar. Mas ele diz que não entrega os cigarros diretamente aos colegas. “Ih, se eu der para eles... não há nada que chegue. Têm uns aí que fumam um atrás do outro. Só não põem dois cigarros na boca porque não tem jeito. Então eu faço e entrego na farmácia. A moça dá três por dia: de manhã, depois do almoço e à noite. Quem quiser mais, que compre.”

O seu Milton, cuja idade e história desconheço, dá-nos uma bela lição de que sempre é possível servir ao próximo. Basta um tiquinho de boa vontade e um bocadinho de criatividade.

FILIPE

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