Morreu Zé Bento. Pobre, sem família e
sem nada, habitava uma cadeira de rodas e morava num asilo. Partiu deixando a
cadeira, mas de seu mesmo, apenas uma caixa de fósforos, um maço com alguns cigarros
e o chapéu. Deixou também umas poucas e rotas roupas, que não despertarão o
interesse de ninguém. A cama em que dormia já está à disposição de outro José,
que não será Bento.
O anúncio na “pedra” foi curto: “Faleceu José Bento, filho de Maria de Jesus
e de Cândido Bento. Era solteiro e deixa amigos”. Por desnecessidade, nada
mais foi escrito. Começando pelo seu nome, o nome de seus pais e culminando com
seu obituário, percebe-se que na vida de Zé Bento tudo foi diminuto.
Por muitos anos eu o vi em sua
cadeira. Sempre em silêncio, parecia estar em permanente meditação. O chapéu de
feltro, que às vezes lhe encobria os olhos, proporcionava-lhe certa elegância e
algum conforto enquanto cochilava. Quando desperto, aqueles olhos tentavam,
embalde, desvendar o horizonte para além da parede que o detinha.
Ele fumava, ou se esforçava para
isso. Suas mãos, inchadas e tesas, mal conseguiam tirar do bolso o maço de
cigarros. Vencida a primeira etapa, já com o maço na mão, a dificuldade só se
fazia aumentar. Na tentativa de tirar um cigarro, dois ou três caíam. Posto na
boca um, a etapa seguinte lhe seria sobre-humana: abrir a caixa de fósforos,
pegar um palito, riscá-lo e acender o cigarro... Ah, Isso ele não conseguia
fazer mesmo. Tanto não, que não era incomum vê-lo com o cigarro na boca à
espera de alguém para que o acendesse.
Sempre que eu chegava, ainda que ele
estivesse dormitando, ia lá e o cumprimentava. Despertado de seu cochilo, ele
esboçava um sorriso e dizia sempre: “Sim, senhor!” Essa foi uma das poucas
frases que dele ouvi.
O negro Zé Bento, que parecia ter emergido
das páginas de Monteiro Lobato – um autêntico “Tio Barnabé” –, tinha os modos
do velho camponês sem letras, sem palavras, sem ambição. Tal como seus
ancestrais ainda do tempo do cativeiro, Zé Bento evocava a genuína figura, já
quase extinta, do “preto velho”: terno, sereno, bonachão.
Morreu o homem com sua história e seu
sorriso. Ao Zé Bento bastava-lhe a vida – que lhe foi dura, conquanto
duradoura. Talvez quisesse ir além dos oitenta e cinco, mas havia uma parede a
lhe ocultar o horizonte. E não há vida sem horizonte.
FILIPE
Bravo, Filipe!
ResponderExcluirPude imaginar todas as cenas
Este homem quase sem nome, sem lembranças para deixar, que parece morrer para ficar no completo esquecimento, como esquecida já era sua vida no meio de tantas cabeças brancas...
Ah se não fosse a eternidade e a plenitude de vida que Alguém nos prepara além (Jo 14, 1-3) como seria terrivelmente absurda a existência, "um ser para o nada!" (Sartre), "ser pastoreado pela morte" (Heidegger). No entanto "criaste-nos para Ti, Senhor, e inquieto está nosso coração enquanto não repousar em Ti" (Agostinho).
Vem, Zé Bento, servo bom e fiel entrar na alegria de teu Senhor!
Que bom ler essas palavras, frei. Um verdadeiro salmo!
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