sexta-feira, 16 de maio de 2014

ZÉ BENTO


Morreu Zé Bento. Pobre, sem família e sem nada, habitava uma cadeira de rodas e morava num asilo. Partiu deixando a cadeira, mas de seu mesmo, apenas uma caixa de fósforos, um maço com alguns cigarros e o chapéu. Deixou também umas poucas e rotas roupas, que não despertarão o interesse de ninguém. A cama em que dormia já está à disposição de outro José, que não será Bento.

O anúncio na “pedra” foi curto: “Faleceu José Bento, filho de Maria de Jesus e de Cândido Bento. Era solteiro e deixa amigos”. Por desnecessidade, nada mais foi escrito. Começando pelo seu nome, o nome de seus pais e culminando com seu obituário, percebe-se que na vida de Zé Bento tudo foi diminuto.

Por muitos anos eu o vi em sua cadeira. Sempre em silêncio, parecia estar em permanente meditação. O chapéu de feltro, que às vezes lhe encobria os olhos, proporcionava-lhe certa elegância e algum conforto enquanto cochilava. Quando desperto, aqueles olhos tentavam, embalde, desvendar o horizonte para além da parede que o detinha.

Ele fumava, ou se esforçava para isso. Suas mãos, inchadas e tesas, mal conseguiam tirar do bolso o maço de cigarros. Vencida a primeira etapa, já com o maço na mão, a dificuldade só se fazia aumentar. Na tentativa de tirar um cigarro, dois ou três caíam. Posto na boca um, a etapa seguinte lhe seria sobre-humana: abrir a caixa de fósforos, pegar um palito, riscá-lo e acender o cigarro... Ah, Isso ele não conseguia fazer mesmo. Tanto não, que não era incomum vê-lo com o cigarro na boca à espera de alguém para que o acendesse.

Sempre que eu chegava, ainda que ele estivesse dormitando, ia lá e o cumprimentava. Despertado de seu cochilo, ele esboçava um sorriso e dizia sempre: “Sim, senhor!” Essa foi uma das poucas frases que dele ouvi.

O negro Zé Bento, que parecia ter emergido das páginas de Monteiro Lobato – um autêntico “Tio Barnabé” –, tinha os modos do velho camponês sem letras, sem palavras, sem ambição. Tal como seus ancestrais ainda do tempo do cativeiro, Zé Bento evocava a genuína figura, já quase extinta, do “preto velho”: terno, sereno, bonachão.

Morreu o homem com sua história e seu sorriso. Ao Zé Bento bastava-lhe a vida – que lhe foi dura, conquanto duradoura. Talvez quisesse ir além dos oitenta e cinco, mas havia uma parede a lhe ocultar o horizonte. E não há vida sem horizonte.

FILIPE


2 comentários:

  1. Bravo, Filipe!
    Pude imaginar todas as cenas
    Este homem quase sem nome, sem lembranças para deixar, que parece morrer para ficar no completo esquecimento, como esquecida já era sua vida no meio de tantas cabeças brancas...
    Ah se não fosse a eternidade e a plenitude de vida que Alguém nos prepara além (Jo 14, 1-3) como seria terrivelmente absurda a existência, "um ser para o nada!" (Sartre), "ser pastoreado pela morte" (Heidegger). No entanto "criaste-nos para Ti, Senhor, e inquieto está nosso coração enquanto não repousar em Ti" (Agostinho).
    Vem, Zé Bento, servo bom e fiel entrar na alegria de teu Senhor!

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    1. Que bom ler essas palavras, frei. Um verdadeiro salmo!

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