sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

A VELHA ESCOLA



Voltei lá. Desci pelo corredor lateral junto às ruínas do que fora um muro de pedras e por onde entrei pela primeira vez há exatos cinquenta anos. Do outro lado do agora inexistente muro, está o que sobrou da farmácia do Sr. José dos Santos – uma das construções mais antigas do arraial. Logo abaixo, antes de chegar ao pátio da antiga escola, havia um enorme abacateiro que ‘se divertia’, espatifando displicentemente seus frutos no chão, exibindo vigorosa semente marrom-clara. Alguns moleques faziam graça, subindo na árvore, mas o abacateiro, certa vez, resolveu livrar-se de um daqueles intrusos. O galho que sustentava o garoto despegou-se, estatelando no chão duro o desafortunado pivete.

Também estive no antigo pátio, onde as meninas brincavam de queimada e os meninos, de ‘garrafão’ – uma espécie de pega-pega meio violento. Nessa brincadeira, quem era pego levava uns cascudos ‘para deixar de ser molenga’ – o meu caso, por exemplo. Mas isso é coisa do passado. Garrafão hoje, só de pinga. Nos fundos também havia, além de outras árvores, um pé de coração-da-índia, que fornecia ‘refeição’ às bocas mais espertas.

Andei por ali, olhei para aqueles espaços vazios e bem varridos. A ‘vassoura de Cronos’ varreu tudo: folhas, árvores e muitas histórias. Mas as minhas lembranças ficaram amontoadas num canto qualquer daquele passado. Caminhei mais um pouco. Entrei na que foi minha primeira sala de aula, hoje um quarto de dormir. Segui para onde fiz o segundo ano, hoje lavanderia. Subi ao segundo pavimento e “vi” dona Bilia preparando nossa merenda. O cômodo continua sendo cozinha, mas sem a dona Bilia e suas grandes panelas com sopa de aveia. Espiei, de soslaio, aquela que foi minha sala do terceiro ano, onde dona Maria Eunice reinava sobre nós, sobre as expressões numéricas, sobre os verbos da primeira, segunda e terceira conjugação, e sobre ‘pontos’ de história e geografia. Era brava, exigente, mas competente. O gabinete da diretora, dona Marisinha, ainda está lá e pude “vê-la” sentada à mesa, fazendo anotações. Ali, ela me ensinou a escrever de forma mais legível, melhorando minha torta caligrafia. Uma professora do segundo ano rebaixara-me de série, por não conseguir decifrar meus garranchos. Mas papai procurou dona Marisinha, que me reconduziu à segunda série. Para tanto, tive que preencher um caderno com o abecedário. “Letras redondas!”, cobrava-me. Deu certo e retornei à minha classe, sem a necessidade de ser ‘rebaixado’ ou reprovado em tempo algum mais.
 
Estando ainda lá embaixo, olhei para cima e pude “ouvir” uma bronca da inconfundível dona Maria Costa: “Onde não há ordem não há progresso!” Assim, com vigor patriótico, ela repreendia os alunos bagunceiros e pouco afeitos aos estudos. Professorinha porreta! Com ela a ‘macambira’ comia solta. Era varada nas pernas, na cabeça... Certa vez, flagrei-a no melhor de seu ofício: juntou orelhas e cabelos de meu irmão mais novo, e sua ‘fúria pedagógica’ só amainou quando o serviço estava pronto e acabado.
   
Aquela casa tem grande significado para mim. Papai, quando menino, ajudou a construí-la, participando do aterro de suas fundações. E foi nela que aprendi a desenhar o ‘João Bolinha”, rabiscar meu nome, fazer ‘garranchos ilegíveis’ e até gostar das poesias de Álvares de Azevedo. Hoje é residência de um casal cujos filhos foram meus colegas naqueles tempos já embolorados. Nessa visita, nostálgico, pude reencontrá-los como antigamente, não me parecendo real.

Eu mudei, a escola mudou, mas o prédio continua lá com suas estórias e lendas... e sua memória secreta. Lá encontrei restos de minha infância, uns caquinhos, coisa pouca, mas o que eu precisava para fazer um retorno de meio século que ora se completa.


FILIPE

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