Voltei lá. Desci pelo corredor
lateral junto às ruínas do que fora um muro de pedras e por onde entrei pela
primeira vez há exatos cinquenta anos. Do outro lado do agora inexistente muro,
está o que sobrou da farmácia do Sr. José dos Santos – uma das construções mais
antigas do arraial. Logo abaixo, antes de chegar ao pátio da antiga escola,
havia um enorme abacateiro que ‘se divertia’, espatifando displicentemente seus
frutos no chão, exibindo vigorosa semente marrom-clara. Alguns moleques faziam
graça, subindo na árvore, mas o abacateiro, certa vez, resolveu livrar-se de um
daqueles intrusos. O galho que sustentava o garoto despegou-se, estatelando no
chão duro o desafortunado pivete.
Também estive no antigo pátio, onde
as meninas brincavam de queimada e os meninos, de ‘garrafão’ – uma espécie de
pega-pega meio violento. Nessa brincadeira, quem era pego levava uns cascudos
‘para deixar de ser molenga’ – o meu caso, por exemplo. Mas isso é coisa do
passado. Garrafão hoje, só de pinga. Nos fundos também havia, além de outras
árvores, um pé de coração-da-índia, que fornecia ‘refeição’ às bocas mais
espertas.
Andei por ali, olhei para aqueles
espaços vazios e bem varridos. A ‘vassoura de Cronos’ varreu tudo: folhas,
árvores e muitas histórias. Mas as minhas lembranças ficaram amontoadas num
canto qualquer daquele passado. Caminhei mais um pouco. Entrei na que foi minha
primeira sala de aula, hoje um quarto de dormir. Segui para onde fiz o segundo
ano, hoje lavanderia. Subi ao segundo pavimento e “vi” dona Bilia preparando
nossa merenda. O cômodo continua sendo cozinha, mas sem a dona Bilia e suas grandes
panelas com sopa de aveia. Espiei, de soslaio, aquela que foi minha sala do
terceiro ano, onde dona Maria Eunice reinava sobre nós, sobre as expressões
numéricas, sobre os verbos da primeira, segunda e terceira conjugação, e sobre
‘pontos’ de história e geografia. Era brava, exigente, mas competente. O
gabinete da diretora, dona Marisinha, ainda está lá e pude “vê-la” sentada à
mesa, fazendo anotações. Ali, ela me ensinou a escrever de forma mais legível,
melhorando minha torta caligrafia. Uma professora do segundo ano rebaixara-me
de série, por não conseguir decifrar meus garranchos. Mas papai procurou dona
Marisinha, que me reconduziu à segunda série. Para tanto, tive que preencher um
caderno com o abecedário. “Letras redondas!”, cobrava-me. Deu certo e retornei
à minha classe, sem a necessidade de ser ‘rebaixado’ ou reprovado em tempo algum
mais.
Estando ainda lá embaixo, olhei
para cima e pude “ouvir” uma bronca da inconfundível dona Maria Costa: “Onde
não há ordem não há progresso!” Assim, com vigor patriótico, ela repreendia os
alunos bagunceiros e pouco afeitos aos estudos. Professorinha porreta! Com ela
a ‘macambira’ comia solta. Era varada nas pernas, na cabeça... Certa vez,
flagrei-a no melhor de seu ofício: juntou orelhas e cabelos de meu irmão mais
novo, e sua ‘fúria pedagógica’ só amainou quando o serviço estava pronto e
acabado.
Aquela casa tem grande
significado para mim. Papai, quando menino, ajudou a construí-la, participando
do aterro de suas fundações. E foi nela que aprendi a desenhar o ‘João Bolinha”,
rabiscar meu nome, fazer ‘garranchos ilegíveis’ e até gostar das poesias de
Álvares de Azevedo. Hoje é residência de um casal cujos filhos foram meus
colegas naqueles tempos já embolorados. Nessa visita, nostálgico, pude reencontrá-los
como antigamente, não me parecendo real.
Eu mudei, a escola mudou, mas o
prédio continua lá com suas estórias e lendas... e sua memória secreta. Lá
encontrei restos de minha infância, uns caquinhos, coisa pouca, mas o que eu precisava
para fazer um retorno de meio século que ora se completa.
FILIPE
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