quinta-feira, 23 de maio de 2019

MAMÃE, AOS OITENTA


É, mamãe já está ficando velhinha. Não pelos oitenta anos que completa neste 23 do mais mariano dos meses. Oitenta anos nem são tantos assim, mas há tempos mamãe deixou de ser a lépida jovem que conheci no alvor de meus dias – hoje vivendo reclusa em seu cantinho. Antes do amanhecer, contudo, ela já se levanta e começa a fazer suas muitas preces. Depois, apoiando-se na parede, caminha até o banheiro. Feita a toalete matinal, empreende uma “longa caminhada” até a varandinha da sala. Ali, sentadinha num sofá, espera pacientemente o abraço morno de um sol ainda sonolento, cujos longos braços perpassam os eucaliptos na encosta do “morro do Tatão Tibúrcio”. Aquecida, ela fixa o horizonte, apertando os olhos num aparente esforço para se manter desperta, mas sucumbe a um breve cochilo quando a caneca de café com leite e bolacha chega pelas mãos do Zezé, seu fiel esposo e escudeiro incansável.

Quando nasci, mamãe era uma jovem de vinte e dois anos – uma adolescente! Sendo um dos mais velhos da prole, pude conviver com ela em seu pleno vigor físico. Muitas vezes a jovem mãe reunia os filhos para o banho, trocava-os e saía para um passeio à casa de minha avó Jacira ou à casa de uma de suas muitas comadres. Mamãe atravessava pastos, passava sob cercas de arame farpado, sobre pinguelas. Não tinha medo: nem de boi nem de cão nem de nada. Poderia ter um rebanho no seu caminho ou uma matilha ladrando, que ela nunca desviava de seu curso. A intrépida senhora não parava nem olhava para trás, indo apressada e a passos firmes.

Numa de suas visitas, ela me escolheu como companhia. Saímos para a casa da dona Bilinha numa manhã de sol, após uma chuvarada. Chegando ao arraial de Vilas Boas, entramos à esquerda e tivemos que passar num riacho com águas bastante revoltas. Estava difícil, mas mamãe quis arriscar a travessia, segurando-me pelo braço. Nisto, veio a mulher do seu Dirceu Paiva, que morava próximo. Era uma senhorinha já ‘quase’ idosa, mas muito esperta. Chegou rápido e, apoiando-se num porrete, atravessou comigo ao colo.  Depois deu a mão à minha mãe e passou com ela também. Nunca me esqueci dessa cena, desse gesto, mas não me lembro do nome daquela doce criatura.

Noutra ocasião, fomos visitar a dona Neusa do Zé Lúcio, comadre de minha mãe, que morava no alto de uma montanha. Saímos ao meio-dia e voltamos já bem tarde, descendo a serra com noite escura. Mamãe veio conversando comigo pela estrada e eu tentei falar de alguns dramas existenciais, que já me acometiam nos meus oito ou nove anos. Lembro-me deter perguntado: “Por que as pessoas são tão desonestas?” Perguntei sem ter a mínima ideia do que seja ‘desonestidade’, mas pelo prazer de usar uma palavra nova, que ouvi em algum lugar e achei interessante. Não lembro o que mamãe respondeu. Talvez apenas tenha rido de meu incipiente pedantismo.  

Também naquele tempo, mamãe gostava de cultivar um minúsculo jardim no terreiro de casa. Ao lado direito da porta da sala, num rústico canteiro, ela plantava moça-velha, bonina, crista-de-galo e outras flores silvestres, que não se veem mais. Na sala, sobre a soleira da janela, havia um pequeno vaso de duas-horas. Toda tarde, desabrochavam-se flores que, no dia seguinte, já murchas, mamãe cortava com uma tesoura.

Foram-se as visitas, foram-se as flores, mas ficaram as memórias – agora ainda mais perfumadas no octogésimo aniversário de mamãe.

FILIPE

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