sexta-feira, 19 de julho de 2019

NA SERRA DA MUTUCA


Numa tarde ensolarada deste inverno, acompanhado de meu irmão caçula e de seu filho, fui ao lugar onde ficava a casa de Antônio Vermieiro – um caboclo que conheci já velho e escarpado pela dura lida do campo. Naquele recanto, sem luz elétrica nem água encanada, seu Antônio viveu por anos com a esposa dona Fiinha – mulher “sem leitura”, mas uma das criaturas mais argutas que já vi.

Subindo sempre, percorrendo pequeno trecho de bosque permeado por furnas de pedra, chegamos às ruínas da antiga edificação.  A casa, há tempos demolida, deixou um teimoso alicerce de pedra bruta, que insiste em delimitar o contorno de cada cômodo: a sala, onde seu Antônio ouvia um velho rádio de pilha, os quartos, uma despensa e a cozinha, que ficava um pouco abaixo do corpo da casa.  Um montinho de terra é o que sobrou do fogão a lenha onde dona Fiinha assava saborosas broas de fubá. Lembro-me de que, em certa manhã, eu tomava chimarrão e ela me ofereceu café com um pedaço daquela broa. Como não bebo café, ela me deu água com açúcar, que aceitei. A partir de então, em todas as minhas madrugadas, quando tomo água doce antes do chimarrão, eu me recordo da simpática dona Fiinha.

Percorrendo as cercanias da antiga casa, encontramos vestígios da engenhoca que seu Antônio usava para fazer garapa de cana para seu café (o açúcar era reservado às visitas). Encontramos também o que sobrou d’uma chaleira, uma foice e algumas enxadas. Eu quis trazer comigo uma enxadinha, não apenas como recordação, mas para usá-la mesmo. Esse cacumbu, que para mim é uma relíquia, foi abençoado pelas mãos daquele montanhês, um dos últimos remanescentes dessa estirpe de bravos camponeses. Do pomar que ele cultivou, ainda restam frondosas mangueiras, um pé de cacau, limoeiros, bananeiras e um abacateiro.  

Em êxtase, meu irmão filmava, fotografava e explicava cada detalhe: “Aqui havia um chiqueiro, ali um galinheiro, lá o paiol, e estes paus eram os troncos do engenho.” Mais:  “Eu tinha um cavalinho, e o padrinho amarrou uma corda nele para tocar a engenhoca. Eu ficava montado no cavalo dando voltas enquanto ele ia pondo cana na moenda para fazer garapa”. Depois: “Cara, eu sou um Peter Pan... Sou um Peter Pan!”, citava o famoso personagem que não aceitava abandonar a infância. E a infância desse irmãozinho foi realmente fantástica junto àqueles seus padrinhos. E assim, ciscando aqui e ali, o caçula ia removendo espessas camadas de três décadas de história, revendo um passado sempre presente em sua vida. Enquanto isso, tal qual o desbravador Indiana Jones, meu sobrinho abria caminho com um machado improvisado.  

Numa de minhas ultimas visitas àquela família, encontrei dona Fiinha bastante doente. Seu Antônio, preocupado com ela porque não se alimentava, desceu até a vendinha e comprou alguns quibes para a esposa. “Eu busquei umas quibas, mas nem isso ela quis”, disse-me desacorçoado. Acamada e com doença grave, aquela mulher nunca reclamou de dores e partiu enquanto rezava. Eu soube com atraso da morte dela, e subi para visitar o amigo, que estava desolado. Lembro-me de sua expressão: reclinado e em silêncio, aquele homem olhava fixamente o chão.

Pouco tempo depois, seu Antônio seguiu sua companheira. Estava sentado, conversando com um parente, quando um estranho silêncio interrompeu o assunto. O companheiro pensou que seu Antônio cochilasse, mas não. Ele partiu tão serenamente como viveu.

FILIPE

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