Cheguei lá à tardinha. A porta estava aberta, a tevê desligada e a
sala vazia de gente. Os cães, sim, estavam por ali, mas estranhamente quietos.
A brancura daquele silêncio permitiu que eu ouvisse vozes sussurradas vindas
das profundezas do corredor – da cozinha, talvez. Dei uma batidinha na porta e
fui entrando, como de costume. Uma mulher, que eu desconhecia, veio ao
meu encontro, olhando-me desconfiada. Perguntei pelo meu amigo. Ela
respondeu que estava no quarto e quis chamá-lo. Acudi dizendo que o deixasse,
que eu iria até lá. Fui incisivo, mas ela se adiantou, acendeu a luz e o
despertou. O amigo estava deitado, tentando disfarçar o sono interrompido
quando me viu. Com os olhos feridos pela luz, tentou sorrir, falando com
indisfarçável dificuldade. “Como tenho sofrido esses dias...” Pensei no
diabetes e perguntei: “Não está bem de saúde?” “De saúde até que estou bem, mas
é muito aborrecimento.” “O que lhe aborreceu?” “Meu neto está preso.” “Ah, é?!
Mas o que foi que houve?” Aqui minha pergunta foi desnecessária, talvez até
ofensiva, mas precisava continuar a conversa com ele e o fio dessa prosa
continha este indesatável nó. “É negócio de maconha”, respondeu sem titubear, e
continuou: “Faz tempo que eu vejo um entra e sai aqui, e eu não gosto disso. Mas
o menino cresceu e não me obedece mais. Antes eu ainda punha ordem, mas hoje
não posso nem comigo”, disse levando a mão trêmula ao rosto, numa expressão de
impotência e desolação. ”A minha cabeça está quebrada. Eles chegaram de
manhã e, por sorte, eu estava dormindo. Senão eu ia preso também, porque não ia
deixar levar o meu neto. Logo ele, que fazia de tudo pra mim... Me dava comida,
remédio, me levava ao médico. Agora eu não tenho mais ele comigo e nem sei pra
onde vão me levar. Ah, mas se eu soubesse quem entregou o meu neto... eu ia
fazer uma bobagem. Ah, se ia. Já me falaram que é pra deixar pra lá, que não
vale a pena se enroscar com isso. Mas eu fico com muita vontade de ir atrás
para saber quem fez aquilo.
Naquele quarto, o ar estava parado, viscoso, denso. Suando e
esperando que o amigo concluísse, eu observava as paredes nuas e borradas pela
umidade. Num canto, uma cadeira de rodas aguardava pacientemente o ‘seu senhor’
para um eventual passeio. Perguntei a ele se não queria que eu buscasse o ventilador.
“Eu já vou pra sala”, disse tentando se sentar na cama. Ajudei-o a se levantar,
conduzi-o até à sala e posicionei o ventilador de forma que pudesse se
refrescar melhor. Ele ficou ali sentado, agora um pouco refeito das angústias.
Lá dentro, duas mulheres continuavam falando baixinho, quase cochichando. De
vez em quando, uma risadinha miúda marcava o fim ou o início de um assunto.
‘Pereirão’ – assim sua esposa se referia a ele – já passou por
muitos solavancos ao longo de seus noventa anos. Perdeu filho, esposa, uma
filha recentemente e agora o neto para a carceragem. Em seu consolo ficaram os
cães, que não o deixam por nada. Enquanto sua barba era feita, um deles
repousava no encosto do sofá, abraçando-lhe carinhosamente o colo.
FILIPE
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