sexta-feira, 9 de novembro de 2018

PEREIRÃO


Cheguei lá à tardinha. A porta estava aberta, a tevê desligada e a sala vazia de gente. Os cães, sim, estavam por ali, mas estranhamente quietos. A brancura daquele silêncio permitiu que eu ouvisse vozes sussurradas vindas das profundezas do corredor – da cozinha, talvez. Dei uma batidinha na porta e fui entrando, como de costume.  Uma mulher, que eu desconhecia, veio ao meu encontro, olhando-me desconfiada.  Perguntei pelo meu amigo. Ela respondeu que estava no quarto e quis chamá-lo. Acudi dizendo que o deixasse, que eu iria até lá. Fui incisivo, mas ela se adiantou, acendeu a luz e o despertou. O amigo estava deitado, tentando disfarçar o sono interrompido quando me viu. Com os olhos feridos pela luz, tentou sorrir, falando com indisfarçável dificuldade. “Como tenho sofrido esses dias...” Pensei no diabetes e perguntei: “Não está bem de saúde?” “De saúde até que estou bem, mas é muito aborrecimento.” “O que lhe aborreceu?” “Meu neto está preso.” “Ah, é?! Mas o que foi que houve?” Aqui minha pergunta foi desnecessária, talvez até ofensiva, mas precisava continuar a conversa com ele e o fio dessa prosa continha este indesatável nó. “É negócio de maconha”, respondeu sem titubear, e continuou: “Faz tempo que eu vejo um entra e sai aqui, e eu não gosto disso. Mas o menino cresceu e não me obedece mais. Antes eu ainda punha ordem, mas hoje não posso nem comigo”, disse levando a mão trêmula ao rosto, numa expressão de impotência e desolação.  ”A minha cabeça está quebrada. Eles chegaram de manhã e, por sorte, eu estava dormindo. Senão eu ia preso também, porque não ia deixar levar o meu neto. Logo ele, que fazia de tudo pra mim... Me dava comida, remédio, me levava ao médico. Agora eu não tenho mais ele comigo e nem sei pra onde vão me levar. Ah, mas se eu soubesse quem entregou o meu neto... eu ia fazer uma bobagem. Ah, se ia. Já me falaram que é pra deixar pra lá, que não vale a pena se enroscar com isso. Mas eu fico com muita vontade de ir atrás para saber quem fez aquilo.

Naquele quarto, o ar estava parado, viscoso, denso. Suando e esperando que o amigo concluísse, eu observava as paredes nuas e borradas pela umidade. Num canto, uma cadeira de rodas aguardava pacientemente o ‘seu senhor’ para um eventual passeio. Perguntei a ele se não queria que eu buscasse o ventilador. “Eu já vou pra sala”, disse tentando se sentar na cama. Ajudei-o a se levantar, conduzi-o até à sala e posicionei o ventilador de forma que pudesse se refrescar melhor. Ele ficou ali sentado, agora um pouco refeito das angústias. Lá dentro, duas mulheres continuavam falando baixinho, quase cochichando. De vez em quando, uma risadinha miúda marcava o fim ou o início de um assunto.

‘Pereirão’ – assim sua esposa se referia a ele – já passou por muitos solavancos ao longo de seus noventa anos. Perdeu filho, esposa, uma filha recentemente e agora o neto para a carceragem. Em seu consolo ficaram os cães, que não o deixam por nada. Enquanto sua barba era feita, um deles repousava no encosto do sofá, abraçando-lhe carinhosamente o colo.

FILIPE

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