À noitinha, ele parou em frente
ao portão, mas não tocou a campainha. Bateu palmas. “Oi, eu sou morador de rua
e vim pedir ‘um real’. Ah, primeiramente parabéns porque hoje é Dia dos Pais. O
senhor é pai?” “Sim, sou pai, mas dinheiro... um real? Sei não...” “Me dá um
real, moço. Eu sou um desgraçado de um pingaiado
e quero comprar uma cachaça, mas não tenho um puto no bolso! Tô sendo sincero, pois mentir é feio. É pra
comprar pinga mesmo.” “Eu vou lhe dar dois reais.” Peguei uma cédula de dois
reais, examinei com cuidado para ver se era mesmo de ‘dois reais’ e dei ao
pedinte. “Olha, eu fico muito agradecido. Cê
fez uma caridade prum morador de rua.
Eu tava bebendo este perfume aqui
(ergueu algo semelhante a um frasco), porque é difícil ficar sem a danada.
Obrigado mesmo. Valeu.”
O homem não foi apenas sincero,
foi honesto também. Não trapaceou dizendo estar há uma semana sem comer, que a
mulher está acamada há meses e que o filho acaba de ser atropelado por um drone.
Não, ele apenas queria comprar um corotinho
de pinga e nada mais. De minha parte, nunca havia pensado que ‘dois reais’
pudessem fazer a fortuna de alguém, dando-lhe tanta alegria.
Refleti detidamente sobre o
episódio acima e aproveito a inexpressividade deste blog, onde posso escrever bobagens
sem ser incomodado, para fazer uma confidência: eu não sou honesto. Ou melhor,
já fui desonesto. Na minha infância, furtei laranjas do quintal de vizinhos,
comi furtivamente doces de uma tia, peguei muitas bananas-maçãs da despensa de
meus avós e invadi uma roça para pegar melancias. O pior é que neste último
delito eu “pequei em vão”, pois as melancias estavam verdes. Bem mais tarde, já adulto e trabalhando nos
Correios, eu peguei selos que se soltavam das correspondências e os aproveitava
nas minhas cartas, que eu enviava sem custo para parentes e amigos.
Arrependido, procurei o chefe para denunciar, não o meu crime, mas a tinta ruim
que usavam nos carimbos, que era facilmente apagada com uma borracha. O chefe
não deu bola e eu, contrariado, continuei na delinquência, economizando selos
por mais algum tempo.
A minha desonestidade, contudo,
são águas passadas. Esta semana, indo ao caixa eletrônico para fazer um pequeno
saque, a máquina tropeçou na contagem e acabou me dando uma gorjeta de trinta
reais. Trinta reais é uma baita grana, capaz de aquecer um sem-número de pingaiados com uma batelada de “corotinhos de felicidade”. E eu seria, pela
definição daquele “meu” morador de rua, um homem afortunado. Mas não. No dia
seguinte, liguei para o banco e pedi instruções para devolver a grana que não
me pertence. A moça, inicialmente pasma, finalizou agradecida, dizendo que eu
terei que procurar a agência. E já me aborreço, porque preciso pegar filas,
senhas etc. Agora que me encontro “reabilitado”, gostaria de que houvesse uma
lei garantindo ‘atendimento preferencial aos honestos’.
Quanto aos moradores de rua, consumistas
contumazes que somos, temos muito o que aprender com eles, que tocam uma vida
alternativa e frugal. Muitos trabalham duro e honestamente na coleta de
recicláveis vendidos a preços vis. E de vez em quando molham o gogó
com umas biritas. Que mal há nisso?
FILIPE
Nenhum comentário:
Postar um comentário