A Capela de Nossa Senhora das
Dores estava quase vazia. Numa urna, defronte ao altar, o corpinho de minha
amiga repousava sereno quando amigos e parentes foram chegando pouco a pouco.
Aproximei-me devagar e a vi. Seu rosto, agora livre das fadigas terrenas, expressava
uma ternura angelical. O pequeno sino tocou e o sacerdote entrou reverente para
dar início à celebração. E nesse momento,
exaltou o nome de dona Ida: “Mulher de muitas virtudes e de oração, dona Ida é digna
de ornar-se com o terço que traz nas mãos!”. Sim, o padre Carlos tem razão. O
terço foi companhia inseparável de dona Ida desde a infância. Nas visitas que
eu fazia, nunca a vi sem o tercinho. Muitas vezes eu a encontrava adormecida,
numa espécie de êxtase, mas numa das mãos estava lá o pequeno rosário.
Essa minha amiga viveu os últimos
cinco anos cega e surda numa cadeira de rodas. Quando eu chegava, ela costumava
perguntar quem sou. Mas na impossibilidade de me ouvir ou me enxergar,
desistiu de fazer essa pergunta, indo logo ao ‘trabalho’: “Eu não sei quem é você
nem o que veio pedir, mas Deus sabe e ele vai atender”. E assim, com a mão
sobre minha cabeça, rezava um Pai-Nosso seguido de uma Ave-Maria, finalizando
com a bênção de São Francisco.
Certa feita, isso aconteceu há
uns dois meses, quando eu me ajoelhei diante dela em sua cadeira e pus sua mão
sobre minha cabeça, como sempre fazia, ela me reconheceu de pronto: “É o
Filipe!”. Sorriu, fez o Sinal da Cruz e começou as preces. Fiquei tocado com
aquilo. Como pode, depois de tantos anos sem me reconhecer, nem ao menos me
enxergar ou me ouvir, ela me identificar?! Que alegria eu senti!
Dona Ida viveu muitos anos em São
Paulo, conforme me contou. Na mocidade, tentou entrar para o convento, mas não
foi aceita. Então ela resolveu, por si, consagrar-se à Virgem Maria, com votos
de pobreza e castidade, e tocou a vida. Criou sobrinhos, que eram órfãos, e se
sustentou, trabalhando em fábrica de tecidos na Zona Leste. Na Igreja, exerceu trabalhos
pastorais com menores carentes. Aposentada e com os sobrinhos já adultos,
mudou-se para Amparo, onde continuou suas atividades na Igreja, como leiga
engajada que sempre fora.
Quando os ventos dos anos lhe sopraram
mais fortemente, dona Ida procurou abrigo no Lar dos Velhos, declinando dos
cuidados oferecidos pela sobrinha. Embora tenha experimentado algum sofrimento
na nova casa, dona Ida foi feliz ali. Tinha uma funcionária de sua confiança, a
Maria, que todos os dias a ajudava. O seu quarto era limpo, organizado e havia uma
‘Madona’ sobre uma cômoda, que enfeitava o ambiente, fazendo do espaço uma
pequena capela. Mas essa imagem foi maldosamente quebrada por alguém. Dona Ida,
embora tenha ficado muito triste com isso, conseguiu que a “restaurassem”. Não acho
que houve restauro. Comprou-se outra imagem e assim ela ficou satisfeita.
“Eu sofro muito, mas não reclamo.
Apenas espero a hora em que Deus vai me chamar”, dizia aquela alquebrada
senhora, amarrada na cadeira, com apenas um sopro de voz. E aos noventa e quatro
anos, dona Ida partiu mesmo, mas ‘em odor de santidade’.
FILIPE
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