sexta-feira, 12 de outubro de 2018

A VIÚVA ÓRFÃ


É domingo, dia do primeiro turno das eleições – se é que haverá um segundo turno (há), ou se é que haverá outras eleições neste país (não se sabe). Pôs roupa nova, foi bonito para a urna eletrônica, porque talvez vá para uma outra ‘urna’ sem que nunca mais vote.

Na fila de votação, começou a ler o jornal. De súbito, alguém atravessou a sua frente e foi logo dizendo: “Uai, ocê tá aqui?” “Sim, vim votar” “Se fosse mais velho, não ficaria na fila... Eu já votei.” Olhou para aquela mulher. Ela estava com um cão, que esticava a guia impaciente, querendo sair logo dali. Mas ela, sem pressa, puxou para si o cão e deitou falação: “Aquela fedepê da juíza me chamou lá e me disse muito desaforo. Ela quer que eu pague pensão pra minha sobrinha-neta, mas eu não posso pagar. Eu já pago tanta coisa, tantas contas dela, e isso há dezesseis anos já. Mas a fedepê da juíza me disse umas boas. Falou que vai investigar minha vida, que vai ver o que tenho de dinheiro e vai me obrigar a dar pensão pra menina. O pior é que eu velha, com mais de oitenta já, cheia de doença e precisando fazer tratamento. Mas a fedepê não quis saber de nada e ainda me expulsou da sala dela. Ela é muito sem educação!” Ele tentou falar alguma coisa, mas a mulher não deixava. Ela precisava desabafar e não tinha ninguém disposto a ouvi-la. Ele não estava para tanto, mas... Quando foi possível, falou algo, sendo novamente interrompido por ela. Mas foi tentando recuperar o fio, até que deu.

“Ouça agora. Espere um pouco. Depois a senhora fala. A juíza não pode tratá-la assim. Você estava com advogado?” “Não. Tinha um lá... mas é do fórum.” “Nada disso, a senhora tem que ter um seu, e dos bons.” “Mas já gasto tanto e vou ter que pagar advogado?! Eu não aguento tantas despesas...” “Sim, a senhora tem que gastar mais ainda para ter tranquilidade.” “Mas eu sou sozinha, viúva, doente e velha. Não posso passar por isso, meu Deus!”

Um parêntese. Essa senhora, que foi casada e não teve filhos, passou a vida como faxineira, doméstica, diarista, até se aposentar com um salário mínimo. Econômica, costumava cozinhar todo o almoço numa mesma panela para economizar gás. Conseguiu alguns bens, mas teve a infelicidade de perder o marido antes da sogra – já quase centenária. O irmão do falecido, com quem ela não se dava desde a juventude, cresceu o olho no patrimônio dela e arrancou o que pôde. Mais tarde, uma sobrinha-neta precisava de cuidados, e ela, compadecida, resolveu ajudá-la. Isso gerou um vínculo, que estourou no fórum. A moça é problemática; a mãe da moça é problemática; o pai da moça... nunca se viu. Mas a juíza cismou com ela e está na sua cola.

Ele prosseguiu: “Conta tudo isso para seu advogado, porque sem advogado não há justiça. Juízes e promotores maus têm que se haver com a OAB.” “Mas eu não tenho OAB...” “Eu digo advogado, que é associado à OAB”. “Mas ela não pode me maltratar assim, me mandar pra fora da sala, gritar comigo, dizer que vai investigar minha vida!” ”Não, não pode, e juiz não investiga vida de ninguém. Isso não é tarefa dele. E tem mais. A senhora é quem lhe paga o salário, e deve ser muito bem tratada por ele.”  Ela quis retomar o discurso inicial, logo interrompida: “Não, a gente vai ficar falando disso aqui a tarde toda e não vai sair do lugar. Vai, minha filha, vai embora e procure um bom advogado. Assim a senhora jamais será humilhada.” “Eu, coitada de mim, sem ninguém, uma viúva...” “Não conhece a história da ‘viúva órfã?’ Tá na Bíblia!” Aqui ele se deu com uma gafe, e todos da fila o olharam com curiosidade. “Viúva órfã... Caramba! Não é bem isso. Mas que seja. Órfã da Justiça!”, pensou. Ela se foi e ele voltou para o jornal, agora sem saber onde tinha parado.

FILIPE

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