sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

JORGINHO


Jorginho era a síntese do caboclo mineiro: desconfiado, de fala mansa e arrastada, perguntador sabido. Mas suas perguntas não eram inconvenientes.  De longe, quando eu ainda enfrentava a cerca de arame farpado que delimita seu cantinho, já ouvia: “Quando você chegou?” Depois de nos cumprimentarmos, outras perguntas viriam: “Quando você vai embora? Ah, você vai ficar uns dias aqui, né?” Também a clássica: “Será que vai chover?” A resposta que sempre dou a esta última é profundamente filosófica. Percorro os céus com um olhar perscrutador à procura de uma benfazeja nuvem e arremato categórico: “Rapaz... Sei não.” Mas, conversa vai, conversa vem, perguntas mais complexas também se ouviam do amigo. “E esse homem da eleição, o presidente, o que acha dele? Será que vai dar certo?...”, indagou-me desta última vez. “Você, que votou no homem, deve saber”, provoquei. “Não, eu não votei nele não. Pra mim ele gosta é de gente rica, de estrangeiro. De pobre é que ele não gosta mesmo.” 

No mês passado fui lá para lhe dar um presentinho. Levei um doce, que nem era presente, mas a paga pela fava que peguei com ele em julho. Estava animado. Capinara todo o quintal, plantou milho e fava. “Sua fava tá plantada”, apontou para o roçado logo abaixo da casa. Vi as covas recém-feitas. A terra estava fofa e as sementes ainda por germinar. Olhei ao lado e notei uma pequena construção rústica. Era o rancho para instalar uma garapeira. Mostrou-me onde fincaria um tronco para que nele afixasse a moenda. “Vai fazer café com a garapa?”, eu quis saber. “Não. A garapa entope o coador. Eu gosto mesmo é de moer a cana e beber a garapa.

Ao lado e um pouco acima do ranchinho da futura garapeira estava uma varanda abarrotada de lenha. Jorginho foi um lenhador, talvez o último da região, que ia à capoeira com foice e corda de bacalhau. Ele cortava a lenha, fazia um grande feixe, amarrava e levava para alimentar seu fogão a lenha.

Faz tempos que adquiri o hábito de visitar o amigo. Inicialmente ia lá para buscar fava, que eu mesmo colhia e debulhava, sem que ele cobrasse por ela. Tentei, na primeira vez, pôr dinheiro em seu bolso, mas ele refutou veementemente. “Não vou cobrar fava de você, jamais. Seu pai me ajudou muito, assinou minha aposentadoria. Eu gosto muito da sua família e pode levar a fava sem pagar nada.” Mas, em troca, eu lhe fazia um agrado: dava uma lanterna, um jogo de chaves, um canivete suíço. Certa vez ofereci calculadora, mas ele já havia comprado uma. “Então você usa a calculadora?” “Sim, uso” “Mas você sabe fazer contas nela?” “Não, eu não conheço letra nem sei fazer conta.” “Uai, mas como usa a calculadora?” “É o seguinte. A gente vai ficando velho e fica esquecendo as coisas. Aí eu uso essa calculadora pra votar. Eu ponho o número do candidato nela e levo para não esquecer.” Ao ouvir isso, senti uma profunda tristeza. Tentei tocar o assunto adiante, convencendo-o a estudar. Perguntei se não queria que eu ensinasse alguma coisa básica, a assinar o nome, por exemplo. “Ah, não, eu não tenho cabeça para aprender. Meu negócio é a enxada e esses ‘trem’ aqui. Essa coisa de estudo atrapalha a cabeça da gente. Vocês, sim, têm mente boa para aprender. Mas eu não.”

Jorginho era um cabra raçudo, que morava sozinho num sítio, longe de vizinhos. Ali ele plantava cana, milho, abóbora, feijão e fava. Tinha também coco-da-baía, mangueiras, pés de laranja e outras árvores. Eu gostava de ir lá e tinha prazer de conversar com ele. Admirava sua coragem, pureza de alma e a sabedoria cabocla. Ansiava por esse encontro, que me parecia poético. Há exatas três semanas estive com ele; duas semanas depois, ele partiu. E partiu como sempre vivia. Sozinho.

FILIPE

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