Jorginho era a síntese do caboclo
mineiro: desconfiado, de fala mansa e arrastada, perguntador sabido. Mas suas
perguntas não eram inconvenientes. De
longe, quando eu ainda enfrentava a cerca de arame farpado que delimita seu
cantinho, já ouvia: “Quando você chegou?” Depois de nos cumprimentarmos, outras
perguntas viriam: “Quando você vai embora? Ah, você vai ficar uns dias aqui,
né?” Também a clássica: “Será que vai chover?” A resposta que sempre dou a esta
última é profundamente filosófica. Percorro os céus com um olhar perscrutador à
procura de uma benfazeja nuvem e arremato categórico: “Rapaz... Sei não.” Mas,
conversa vai, conversa vem, perguntas mais complexas também se ouviam do amigo.
“E esse homem da eleição, o presidente, o que acha dele? Será que vai dar
certo?...”, indagou-me desta última vez. “Você, que votou no homem, deve
saber”, provoquei. “Não, eu não votei nele não. Pra mim ele gosta é de gente
rica, de estrangeiro. De pobre é que ele não gosta mesmo.”
No mês passado fui lá para lhe dar
um presentinho. Levei um doce, que nem era presente, mas a paga pela fava que
peguei com ele em julho. Estava animado. Capinara todo o quintal, plantou milho
e fava. “Sua fava tá plantada”, apontou para o roçado logo abaixo da casa. Vi
as covas recém-feitas. A terra estava fofa e as sementes ainda por germinar.
Olhei ao lado e notei uma pequena construção rústica. Era o rancho para
instalar uma garapeira. Mostrou-me onde fincaria um tronco para que nele
afixasse a moenda. “Vai fazer café com a garapa?”, eu quis saber. “Não. A
garapa entope o coador. Eu gosto mesmo é de moer a cana e beber a garapa.
Ao lado e um pouco acima do
ranchinho da futura garapeira estava uma varanda abarrotada de lenha. Jorginho
foi um lenhador, talvez o último da região, que ia à capoeira com foice e corda
de bacalhau. Ele cortava a lenha, fazia um grande feixe, amarrava e levava para
alimentar seu fogão a lenha.
Faz tempos que adquiri o hábito
de visitar o amigo. Inicialmente ia lá para buscar fava, que eu mesmo colhia e
debulhava, sem que ele cobrasse por ela. Tentei, na primeira vez, pôr dinheiro
em seu bolso, mas ele refutou veementemente. “Não vou cobrar fava de você,
jamais. Seu pai me ajudou muito, assinou minha aposentadoria. Eu gosto muito da
sua família e pode levar a fava sem pagar nada.” Mas, em troca, eu lhe fazia um
agrado: dava uma lanterna, um jogo de chaves, um canivete suíço. Certa vez
ofereci calculadora, mas ele já havia comprado uma. “Então você usa a
calculadora?” “Sim, uso” “Mas você sabe fazer contas nela?” “Não, eu não
conheço letra nem sei fazer conta.” “Uai, mas como usa a calculadora?” “É o
seguinte. A gente vai ficando velho e fica esquecendo as coisas. Aí eu uso essa
calculadora pra votar. Eu ponho o número do candidato nela e levo para não
esquecer.” Ao ouvir isso, senti uma profunda tristeza. Tentei tocar o assunto
adiante, convencendo-o a estudar. Perguntei se não queria que eu ensinasse
alguma coisa básica, a assinar o nome, por exemplo. “Ah, não, eu não tenho
cabeça para aprender. Meu negócio é a enxada e esses ‘trem’ aqui. Essa coisa de estudo atrapalha a cabeça da gente.
Vocês, sim, têm mente boa para aprender. Mas eu não.”
Jorginho era um cabra raçudo, que morava sozinho num sítio, longe de vizinhos. Ali ele
plantava cana, milho, abóbora, feijão e fava. Tinha também coco-da-baía,
mangueiras, pés de laranja e outras árvores. Eu gostava de ir lá e tinha prazer
de conversar com ele. Admirava sua coragem, pureza de alma e a sabedoria
cabocla. Ansiava por esse encontro, que me parecia poético. Há exatas três
semanas estive com ele; duas semanas depois, ele partiu. E partiu como sempre
vivia. Sozinho.
FILIPE
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