sexta-feira, 5 de abril de 2013

MANO VÉIO


Aquele menino acaba de completar 55 anos. Ainda ontem, estava ele na casa dos pais ajudando na labuta para sustentar uma prole já grande e ainda crescente. Mal acabara de completar onze anos e o curso primário, já assumiria o posto de braço direito da família na lida com a lavoura. Todos os dias, exceto domingo, levantava-se bem cedo, lavava o rosto, tomava uma xícara de café, enchia uma moringa com água, pegava seu cacumbu (enxada velha e mal encabada) e rumava para o roçado. Eu deveria acompanhá-lo, mas, como sempre malemolente, chegava atrasado. Fato que me rendeu fartas e sonoras repreensões. E hoje, aqueles longínquos tempos que a memória traz de volta percorrendo um atalho – esses misteriosos cosmológicos “buracos de minhoca” de nossa mente – tomam-me de assalto.

O menino, já rapazinho, foi para a cidade grande, passando-me o cajado da responsabilidade rural que nunca consegui segurar com firmeza, para tristeza de papai e prejuízo de todos. Da metrópole, ele traria uma brisa civilizatória para nosso rincão; e as cartas começaram a chegar. Primeiramente, falando da nova rotina, dos amigos e mestres; depois, do aperto nos estudos e, de vez em quando, um enorme boletim escolar vinha para papai assinar. A exceção do Latim, suas notas eram boas, ótimas, fruto de grande esforço. Porém, como sempre, a alegria nunca abandona sua irmã tristeza. Em certas cartas passaram a vir cobranças do senhor reitor. Seria preciso pagar determinada anuidade, e essa importância se avolumava gradativamente. Por fim, a doce expectativa de receber a cartinha do irmão distante  foi se transmudando em apreensão. Mas, felizmente, tudo se resolveu.

Fato marcante daqueles tempos eram as férias. Em julho e em dezembro, o menino, então já rapazinho, era por todos alegremente aguardado. Uma jubilosa explosão ressoava pelos vales quando a irmã mais velha anunciava. “Ele está chegando!” Era só, e o suficiente. Crianças, debandávamos ao encontro do primogênito como que esvoaçando pelos trilhos nos pastos em doce algaravia. Enquanto isso, os miudinhos, que mal engatinhavam, permaneciam no terreiro de casa com a irmã mais velha.  Chegando, uma enorme mala, pesadíssima, era posta no chão da sala. Aberta a mala, começava o melhor da festa. Eram tantos os presentinhos, umas quinquilharias, cada qual mais interessante: um jogo de damas, um jogo de memória, chaveirinhos, baralhos, livrinhos, casacos e muito mais - coisas que ele ganhava e nos repassava. Mas era dele a prerrogativa de fazer a distribuição justa e igualitária daquela fortuna. Cada um de nós lucrava ao menos um casaquinho. Muitas vezes, na ânsia em exibir o novo modelito, vestíamos grossas lãs em pleno verão. Mas a irmã... pobre irmãzinha!... Para ela, quase nada havia. Posto que o irmão vivesse num ambiente de rapazes, e naquele tempo, diferentemente de hoje, os homens tinham hábitos estritamente masculinos, nada poderia servir à doce menina que a todos servia. Ainda assim, grande era sua alegria ao ver os pequenos felizes.

Quarenta anos se passaram desde aquele dia em que papai conduziu seu primogênito ao seminário. O garoto, antes mirrado, de pele queimada e de poucas letras, tornou-se robusto e ladino. Sou imensamente grato a este irmão que muito me ajudou, iniciando-me numa leitura mais seletiva e engajada. Então, para este que me foi um verdadeiro mecenas, deixo expresso meu reconhecimento, minha gratidão. Obrigado, Mano Véio!

FILIPE

Um comentário:

  1. Muito emocionante o texto Felipe. Realça muito o afeto que vocês tem entre família, o que está tão difícil nos dias de hoje. Sou uma privilegiada por ter entrada para essa família, que agora mais do que nunca, se tornou mais minha ainda. Parabéns pelo depoimento.

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