Aquele menino
acaba de completar 55 anos. Ainda ontem, estava ele na casa dos pais ajudando
na labuta para sustentar uma prole já grande e ainda crescente. Mal acabara de
completar onze anos e o curso primário, já assumiria o posto de braço direito da
família na lida com a lavoura. Todos os dias, exceto domingo, levantava-se bem
cedo, lavava o rosto, tomava uma xícara de café, enchia uma moringa com água,
pegava seu cacumbu (enxada velha e mal encabada) e rumava para o roçado. Eu deveria
acompanhá-lo, mas, como sempre malemolente, chegava atrasado. Fato que me
rendeu fartas e sonoras repreensões. E hoje, aqueles longínquos tempos que a
memória traz de volta percorrendo um atalho – esses misteriosos cosmológicos “buracos
de minhoca” de nossa mente – tomam-me de assalto.
O menino, já
rapazinho, foi para a cidade grande, passando-me o cajado da responsabilidade
rural que nunca consegui segurar com firmeza, para tristeza de papai e prejuízo
de todos. Da metrópole, ele traria uma brisa civilizatória para nosso rincão; e
as cartas começaram a chegar. Primeiramente, falando da nova rotina, dos amigos
e mestres; depois, do aperto nos estudos e, de vez em quando, um enorme boletim
escolar vinha para papai assinar. A exceção do Latim, suas notas eram boas,
ótimas, fruto de grande esforço. Porém, como sempre, a alegria nunca abandona
sua irmã tristeza. Em certas cartas passaram a vir cobranças do senhor reitor. Seria
preciso pagar determinada anuidade, e essa importância se avolumava gradativamente.
Por fim, a doce expectativa de receber a cartinha do irmão distante foi se transmudando em apreensão. Mas,
felizmente, tudo se resolveu.
Fato marcante
daqueles tempos eram as férias. Em julho e em dezembro, o menino, então já rapazinho,
era por todos alegremente aguardado. Uma jubilosa explosão ressoava pelos vales
quando a irmã mais velha anunciava. “Ele está chegando!” Era só, e o
suficiente. Crianças, debandávamos ao encontro do primogênito como que
esvoaçando pelos trilhos nos pastos em doce algaravia. Enquanto isso, os
miudinhos, que mal engatinhavam, permaneciam no terreiro de casa com a irmã
mais velha. Chegando, uma enorme mala,
pesadíssima, era posta no chão da sala. Aberta a mala, começava o melhor da
festa. Eram tantos os presentinhos, umas quinquilharias, cada qual mais
interessante: um jogo de damas, um jogo de memória, chaveirinhos, baralhos,
livrinhos, casacos e muito mais - coisas que ele ganhava e nos repassava. Mas
era dele a prerrogativa de fazer a distribuição justa e igualitária daquela
fortuna. Cada um de nós lucrava ao menos um casaquinho. Muitas vezes, na ânsia
em exibir o novo modelito, vestíamos grossas lãs em pleno verão. Mas a irmã... pobre
irmãzinha!... Para ela, quase nada havia. Posto que o irmão vivesse num
ambiente de rapazes, e naquele tempo, diferentemente de hoje, os homens tinham
hábitos estritamente masculinos, nada poderia servir à doce menina que a todos
servia. Ainda assim, grande era sua alegria ao ver os pequenos felizes.
Quarenta anos
se passaram desde aquele dia em que papai conduziu seu primogênito ao
seminário. O garoto, antes mirrado, de pele queimada e de poucas letras, tornou-se
robusto e ladino. Sou imensamente grato a este irmão que muito me ajudou, iniciando-me
numa leitura mais seletiva e engajada. Então, para este que me foi um
verdadeiro mecenas, deixo expresso meu reconhecimento, minha gratidão.
Obrigado, Mano Véio!
FILIPE
Muito emocionante o texto Felipe. Realça muito o afeto que vocês tem entre família, o que está tão difícil nos dias de hoje. Sou uma privilegiada por ter entrada para essa família, que agora mais do que nunca, se tornou mais minha ainda. Parabéns pelo depoimento.
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