Previno o raríssimo leitor: este
texto contém “substâncias tóxicas”. Caso o desavisado companheiro esteja à
procura de amenidades, migre para outra página, porque aqui as cores não estão muito
para o azul.
Nestas quase três décadas em que
me encontro no magistério paulista, já vi de tudo. Naturalmente coisas boas
aconteceram, mas sem mérito dos governantes. O governo atual, por exemplo,
resolveu dar fim às faltas de professores, convocando os que não faltam para
“tapar buracos”. Alguns diretores cumprem à risca os ditames do governador, e
seus comandados lhes obedecem bovinamente, sem que haja sequer um gemido de
indignação. Na escola em que trabalho, justiça seja feita, os gestores apenas convidam
os professores que se encontram em atividades burocráticas para cobrir certas
faltas, sem obrigá-los. De minha parte, procuro colaborar, atendendo classes
que nem são minhas. A recepção é sempre amistosa e um bom trabalho tem sido
feito.
Ontem, no entanto, a fortuna não
me visitou. Após eu “tapar dois buracos”, uma colega me abordou, dizendo: “Você
está substituindo?!” “Sim”, eu disse. “Então não entre naquela sala ali”,
apontou. “Mas, por quê, se me dou muito bem com eles?” “Nem queria te contar,
mas ouvi uma barbaridade agora, e acho que você não deveria entrar lá.” Ouvi a tal
‘barbaridade’ que um jovem teria dito, mas dei de ombros. Passou um tempinho,
senti um calafrio e pensei: “Isso não pode ficar assim. Vou lá.” Uma das
professoras com quem eu conversava pediu para me acompanhar, mas eu quis ir
sozinho.
Entrei na sala, pedindo licença e
dando bom-dia como sempre faço, e fui direto ao assunto. “Bem, como vocês
sabem, faltam professores nesta escola, e, para que vocês não tenham tanto
prejuízo, entro nessas aulas vagas.
Olha, eu faço isso por que quero. Faço pensando no bem de vocês. E
nessas entradas, nunca obrigo meu aluno a fazer as lições. Eu tenho enorme
carinho por esta classe e sempre que entro aqui, chego de ‘coração aberto’. Para
mim é sempre uma alegria muito grande estar aqui”. Enquanto eu falava, todos me
ouviam com excepcional atenção, talvez esperando o triste desfecho de meu
discurso, que chegou sem delonga. Hoje, porém, eu soube que alguém daqui disse
para quem quisesse ouvir: ‘Aquele filho da puta vai dar aula pra nós hoje, e
nem é dia dele!’ Olha, respeite a minha mãe, que se encontra enferma, sofrendo numa
cama. E a minha mãe não é puta. Portanto, eu não sou filho da puta!”
Depois disso, uma
professora-gestora conversou com a classe e me deu o apoio de que tanto
precisava. Mais tarde, uma aluna me procurou, solidarizando-se comigo. “Fiquei
muito sentida pelo senhor”, ela disse. Pressentindo que fosse dizer o nome de
alguém, eu a interrompi: “Olha, agradeço muito a sua solidariedade, mas eu não
quero saber quem disse aquilo. Quero continuar estimando a todos, sem exceção.”
Hoje entrei naquela sala como se
nada tivesse acontecido. Mas aconteceu.
FILIPE
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