Dona Celisa foi uma das pessoas
mais incríveis com quem convivi ao longo desta vida, que já se alonga. Quando a
conheci, ela era uma “jovem octogenária”, que conservava o viço da mulher culta
e elegante que sempre fora. Sua companhia era leve, suave, quase imperceptível.
À noite, aquela mulher nunca se recolhia aos seus aposentos sem antes nos dar
um boa-noite; pela manhã, ao se levantar, o bom-dia era tão certo quanto uma
prece matinal.
Dona Celisa gostava de café. No
começo de sua enfermidade, eu lhe dava o “pretinho” ainda na cama. Ela se
sentava, pegava a xícara e, após um pequeno gole, dizia: “Tá gostoso!”
Paulista, dona Celisa mais
parecia uma mineira. O jeito de receber
visitas, de prosear e o café oferecido a quem chegasse davam-lhe um ar de
mineiridade. Muitas vezes, enquanto sua filha dava aulas de pintura lá no
rancho, ela pegava o pote de pó, uma vasilha com água e me olhava sem dizer
nada. Então eu sabia que era para fazer o café. Mas não era só café. Ela também
pegava manteiga e pão, punha numa bandeja e me pedia para levar para as meninas.
Quando cheguei naquela casa, logo
assumi o fogão e a dona Celisa passou se referir a mim como “o cozinheiro”. Eu
não sabia cozinhar, mas inventava uns “grudes” que nos matavam a fome. Embora muito
contida à mesa, ela gostava da comida e sempre dizia: “Desse jeito vamos todos sair
daqui rolando [de tão gordos]!”
Dona Celisa tinha uma predileção pelos
pobres e desafortunados. No Natal, ela sempre dava um “envelope recheado” aos
coletadores; o pedinte nunca saía de mãos vazias; e, todas as sextas-feiras, por
volta das 15 horas, ela saía para visitar uma amiga adoentada. Também nunca
perdia as missas e participava de todas as novenas, rezas e campanhas de
arrecadação feitas pela sua comunidade.
De dona Celisa ouvi muitos casos
e fatos antigos, alguns do final do primeiro terço do século passado. Contava
ela que em 1932, durante a guerra civil entre paulistas e o governo Vargas, houve
tiroteio na cidade de Amparo. Aflitos, ela com seus irmãozinhos protegiam-se no
porão do casarão onde moravam. “Foi um horror!”, dizia.
Dona Celisa falava bastante sobre
seu trabalho. O começo da carreira de professora, no início dos anos cinquenta,
foi muito difícil. Contou-me com detalhes suas dificuldades na distante Bofete (uma
cidade paulista), aonde se chegava somente a pé ou a cavalo. Depois, já no
encerramento da carreira, mais dificuldades.
Transferida para uma escola próxima de casa, teve de dar aulas para uma
classe numerosa e indisciplinada. Na sala de aula eram tantos alunos, que ela não
conseguia transitar entre as carteiras para lhes dar assistência.
Certa vez dona Celisa me mostrou um
papel já bem desgastado. Era uma redação dos tempos de estudante, de quando era
adolescente. Ali, a jovem fez uma descrição poética e pungente da mãe
gravemente enferma, de quem pouco tempo depois ficaria órfã.
O tempo foi passando e a dona Celisa
não conseguia mais fazer suas visitas nem ir às rezas. O tempo passou mais um
pouco e dona Celisa já não contava caso. Por fim, a bondosa senhora já não
sorria.
Hoje a dona Celisa está no
Paraíso com os serafins, os querubins e as pessoas que, como ela, fizeram o bem
aqui na terra. Mas não só com esses. Ela, com toda certeza, tem consigo a
Lilica – sua fiel cadelinha de quem não se desgrudava.
Assim acredito, porque toda criatura
terá parte com o Criador!
FILIPE
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