sábado, 15 de janeiro de 2022

DONA CELISA

 


Dona Celisa foi uma das pessoas mais incríveis com quem convivi ao longo desta vida, que já se alonga. Quando a conheci, ela era uma “jovem octogenária”, que conservava o viço da mulher culta e elegante que sempre fora. Sua companhia era leve, suave, quase imperceptível. À noite, aquela mulher nunca se recolhia aos seus aposentos sem antes nos dar um boa-noite; pela manhã, ao se levantar, o bom-dia era tão certo quanto uma prece matinal.

Dona Celisa gostava de café. No começo de sua enfermidade, eu lhe dava o “pretinho” ainda na cama. Ela se sentava, pegava a xícara e, após um pequeno gole, dizia: “Tá gostoso!”

Paulista, dona Celisa mais parecia uma mineira.  O jeito de receber visitas, de prosear e o café oferecido a quem chegasse davam-lhe um ar de mineiridade. Muitas vezes, enquanto sua filha dava aulas de pintura lá no rancho, ela pegava o pote de pó, uma vasilha com água e me olhava sem dizer nada. Então eu sabia que era para fazer o café. Mas não era só café. Ela também pegava manteiga e pão, punha numa bandeja e me pedia para levar para as meninas.

Quando cheguei naquela casa, logo assumi o fogão e a dona Celisa passou se referir a mim como “o cozinheiro”. Eu não sabia cozinhar, mas inventava uns “grudes” que nos matavam a fome. Embora muito contida à mesa, ela gostava da comida e sempre dizia: “Desse jeito vamos todos sair daqui rolando [de tão gordos]!”

Dona Celisa tinha uma predileção pelos pobres e desafortunados. No Natal, ela sempre dava um “envelope recheado” aos coletadores; o pedinte nunca saía de mãos vazias; e, todas as sextas-feiras, por volta das 15 horas, ela saía para visitar uma amiga adoentada. Também nunca perdia as missas e participava de todas as novenas, rezas e campanhas de arrecadação feitas pela sua comunidade.

De dona Celisa ouvi muitos casos e fatos antigos, alguns do final do primeiro terço do século passado. Contava ela que em 1932, durante a guerra civil entre paulistas e o governo Vargas, houve tiroteio na cidade de Amparo. Aflitos, ela com seus irmãozinhos protegiam-se no porão do casarão onde moravam. “Foi um horror!”, dizia.

Dona Celisa falava bastante sobre seu trabalho. O começo da carreira de professora, no início dos anos cinquenta, foi muito difícil. Contou-me com detalhes suas dificuldades na distante Bofete (uma cidade paulista), aonde se chegava somente a pé ou a cavalo. Depois, já no encerramento da carreira, mais dificuldades.  Transferida para uma escola próxima de casa, teve de dar aulas para uma classe numerosa e indisciplinada. Na sala de aula eram tantos alunos, que ela não conseguia transitar entre as carteiras para lhes dar assistência.

Certa vez dona Celisa me mostrou um papel já bem desgastado. Era uma redação dos tempos de estudante, de quando era adolescente. Ali, a jovem fez uma descrição poética e pungente da mãe gravemente enferma, de quem pouco tempo depois ficaria órfã.

O tempo foi passando e a dona Celisa não conseguia mais fazer suas visitas nem ir às rezas. O tempo passou mais um pouco e dona Celisa já não contava caso. Por fim, a bondosa senhora já não sorria.

Hoje a dona Celisa está no Paraíso com os serafins, os querubins e as pessoas que, como ela, fizeram o bem aqui na terra. Mas não só com esses. Ela, com toda certeza, tem consigo a Lilica – sua fiel cadelinha de quem não se desgrudava.

Assim acredito, porque toda criatura terá parte com o Criador!

FILIPE


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