segunda-feira, 21 de outubro de 2024



O quarto está meio bagunçado, alguém dirá, mas não vejo nenhuma bagunça ali. Vejo, sim, a imagem do despojamento de alguém que abandonou tudo para abraçar um ideal de vida, que poucos têm disposição de fazer. Ali está todo o patrimônio de um frei franciscano já entrado em anos. Dá pra observar umas roupas, que talvez estejam em uso ou separadas para serem lavadas. Veem-se alguns livros, na certa de oração, um pequeno armário que deve conter outros livros e algumas vestes. Ao fundo, amedrontadas com a lente do celular, garrafas de Coca-Cola tentam se esconder de meu campo de visão – um pequeno e furtivo luxo desse discreto ‘ancião’.

Escolhido ao acaso para ser fotografado, esse é um dos vários aposentos da comunidade de frades que visitei. A casa em que moram é ampla e confortável. No entanto, individualmente, cada frei tem apenas o que lhe assegura uma sobrevivência digna, mas sem excessos. Por voto religioso e compromisso com a Congregação, nenhum frade pode decidir por si o que vai fazer hoje, amanhã ou na semana que vem. A vida monástica é regrada por estatutos bastante rígidos, com horários para oração, trabalhos braçais, atendimento à comunidade etc. Mas também há momentos de lazer, que são desfrutados com uma alegria incomum.

Pude ver freis jogando vôlei com alguns jovens que moram nas cercanias. Cena curiosa e engraçada aquela em que homens de meia-idade, barbudos, trajando batinões, disputam aguerridamente a partida com jovens descolados. Nos times se misturam velhos e moços, homens e mulheres, sem etarismo nem machismo. O que importa ali é o entretenimento.

Naquela casa, o almoço é servido ao meio-dia com uma comida simples, farta e saborosa. À mesa se sentam todos os religiosos, que começam a refeição após uma breve oração; outra prece sinaliza o final da ‘boia’, quando todos deixam a mesa e se dirigem à pia para ajudar na lavação das louças e panelas.

Naquele momento mágico, que é a refeição com os frades, enquanto um passa a salada para alguém e outro pede a farofa a outrem, um engraçadinho cisma de contar piadas. Todos riem, mas não se sabe se é da piada ou de quem a conta. Eu mesmo tive que dar risada de um frei, o mais “criativo” deles, que me trouxe um "pote de sorvete" enquanto eu terminava meu almoço. Esse frei, muito gentilmente, me ofereceu a sobremesa que seria de chocolate. Fiquei movido, mas agradeci, dizendo que estava satisfeito. O danado insistia, mas resisti heroicamente àquela tentação. Por fim, quando viu que seu esforço seria em vão, ele destampou o pote e me mostrou uma coisa lá dentro, que não era sorvete, mas algum cereal que não consegui identificar.  “Bem feito!”, eu disse rindo. “Você queria me enganar, mas perdeu seu tempo.”  

Foi tudo muito lindo e maravilhoso, mas a vida religiosa não é para aventureiros. No entanto, após uma semana de imersão no ‘franciscanismo’, saí renovado dali.  Eu estava muito precisado disso, porque tenho andado bastante desanimado. Na minha cidade, o padre encasquetou que a igreja em que ele reza missa deve virar basílica e para isso tem exortado os fiéis a fazerem suas rezas. Para esse cura, não importa que o planeta arda em chamas ou a vida desapareça numa hecatombe nuclear. O que ele quer mesmo é uma basílica.

FILIPE 

sábado, 5 de outubro de 2024

CADÊ O TIZIU?

 


Ele está aqui, mas não é sobre o Tiziu que vou escrever. O cãozinho acima foi encontrado numa rodovia há mais de dez anos. Estava ferido, com sede, com fome e sangrando. Até merece uma ‘biografia’, mas não será desta vez. Todavia, por carinho e atenção, volto a citá-lo no final da crônica.

O assunto aqui são as queimadas, esse inferno a que se tornou parte considerável do país. Tenho evitado o noticiário e sempre que posso mudo de assunto com as pessoas que abordam essa tragédia. Mas não tem ‘escapamento’, como diria um velho conhecido, como se vê aqui.

Dias atrás, antes ainda de as chamas calcinarem a exuberante vegetação das montanhas que circundam minha ‘aldeia’, tive uma conversa meio amalucada com o funcionário da loja de materiais de construção. Enquanto escolhíamos umas tábuas de que eu precisava e sem ter o que assuntar, saí com esta: “Cara, essas queimadas são coisa de gente criminosa. Tivesse eu algum poder, pegaria um caboclo desses, amarraria num poste e o deixaria assim durante uma semana. Ele não passaria sede nem fome, porque seria muita crueldade, mas teria que ficar abraçado ao poste durante sete dias, sem trégua. Marmita pra almoço e pra janta além de umas garrafas com água não lhe faltariam.  Finda a pena, seria desamarrado e solto, mas continuaria vigiado. Com pessoas assim, todo cuidado é pouco. Vai saber...”

O rapaz sorria enquanto eu falava, mas não me interrompeu. Quando terminei, ele já havia separado as madeiras que eu compraria e, com elas, veio uma “aula” que eu não pedi. Professoralmente, ele começou: “Você acha mesmo que tem pessoas pondo fogo no mato? Pois penso que não. Outro dia ouvi uma explicação sobre essas queimadas. Pode ver que o fogo começa sempre no alto do morro. É o seguinte. O sol está ficando cada vez mais perto de nós, parece que está caindo, e isso os cientistas afirmam. Acontece que, se o sol já está mais baixo e o morro é muito alto, vai ficando complicado. E tem a gravidade. Você sabe que a gravidade no alto do morro é maior do que aqui embaixo, né?... E assim, com o sol mais forte lá em cima e a gravidade maior, claro que vai pegar fogo. É isso. Não tem nada de gente botando fogo no mato não.”

Depois daquela explicação, fui ao caixa e paguei as tábuas, mas não a aula, e saí bem desacoroçoado. Até desisti da luminosa ideia de amarrar homem em poste.

Agora é a vez do Tiziu sobre quem prometi voltar a falar. Primeiramente, eu precisava de uma imagem que pudesse atrair o raro leitor para este texto e quis abri-lo com essa foto tirada ontem, que foi o dia de São Francisco. Segundamente, o nome do cãozinho é uma homenagem àqueles simpáticos passarinhos que, vítimas de agrotóxicos, desapareceram desta redondeza.

Finalizando, sei que vou chocar as almas mais sensíveis, mas preciso dizer que sinto mais falta dos bichinhos do que de certas gentes. Isso soa antipático, deve ser até pecado, mas os meus sentimentos não obedecem a regras nem cumprem leis. Ah, e os bichinhos não incendeiam o planeta.

FILIPE