Passava das
cinco da tarde quando ela chegou. Estava cansada, arfante. Perguntou-lhe por
onde andava. “Espera um pouco”, disse ela com dificuldade para falar. Sentou-se
num banco de madeira e aceitou um copo d’água fresca. Ela pegou o copo, bebeu
um gole e o devolveu com um semissorriso.
As coisas pareciam meio complicadas para o casal, e, de uns dias para cá,
ela sempre saía para fazer algo que ele ignorava. Houve uns tempos em que sua
escapada era pela manhã; agora saía à tarde, bem de tardinha.
Quando menina,
costumava ir ao armazém do seu Chico com a irmã mais velha para comprar uns
doces. Não era bem “doce” o nome que se dava àquela iguaria feita quase que
exclusivamente de açúcar e corante.
Chamavam aquilo de bala-de-bico e havia nas mais variadas cores:
caramelo, vermelha, amarela, laranja, verde etc. Conquanto não variasse o aroma
nem o sabor, ela gostava das verdinhas; e quando não as encontrava costumava
embirrar, recusando-se a voltar para casa. A irmã não lhe era muito tolerante. Pegava
o chinelo ameaçando-a, mas só. Isso bastava e nunca se soube de alguma
chinelada. Mas, pelo que se observava, parecia que aquele chinelo de borracha
tinha funções mais nobres, além de dar proteção aos pés da mocinha
disciplinadora.
Naquele dia
ela o fitou com um olhar tristonho, com um quê de mistério que ele não
conseguia desvendar. Como convém em momentos assim, ele fez as perguntas de
praxe: “O que foi? Não está se sentindo bem? Em que posso ajudá-la?” – Ela lhe
acenou com a mão espalmada expressando impaciência. Entendido seu desejo de
ficar só, deixou-a por um momento. Foi ao quintal conversar com os bichinhos,
um vira-lata e um poodle, que jamais
recusaram sua companhia, nem a dela, nem a de ninguém.
Sentado
embaixo de um abacateiro, passando o pé sobre a barriga do vira-lata e a mão na
pelagem do poodle, repassou o filme
dos últimos anos. Desde o dia em que a conheceu junto de sua amiga Vera, numa
tarde de domingo na pracinha da Matriz. Incomodava-o a obsessão dela por
esoterismo e a aguda aversão por religião. “Coisa pra trouxa”, dizia sempre.
Lembrou-se dos cabelos longos e encaracolados que, na brisa daquela tarde,
tornavam-se revoltos encobrindo-lhe o rosto pontilhado de espinhas. Ela,
delicadamente, fazia-os voltar ao lugar de origem ensaiando um falso rabo-de-cavalo
que era imediatamente desfeito devido ao peso e volume daquela exuberante juba,
preta como uma jabuticaba – ou como as asas da graúna, conforme diria Alencar.
O frio acompanhado de uma tênue neblina fê-los sair do relento e buscar abrigo
num pequeno bar. O guaraná que foi por ela aceito sem cerimônia, o reencontro
marcado para o sábado seguinte naquele mesmo banquinho da praça, “às dezoito
horas!” e alguns desencontros foram suas mais abrasadas lembranças.
Entrou na casa
novamente e não mais a viu por lá. Chamou-a uma, duas vezes. Quis gritar seu
nome bem alto, mas conteve-se. Saiu em direção à rua e fechou rápido o portão
para que os cãezinhos não o acompanhassem. Foi até a farmácia, que fica próxima
ao ponto de ônibus, na expectativa de encontrá-la. Talvez fosse buscar algum
remédio para dor de cabeça. Embalde foi a procura. Ela não estava na farmácia e
nem passara por lá de acordo com o balconista, um velho conhecido. Voltou para
casa e esperou por ela. Caiu a noite, mas não lhe caiu a ficha. Ela não
voltaria naquele dia, nem no dia seguinte. Ela jamais voltou.
FILIPE
Felipe, posso saber sobre quem é esse texto que vc escreveu? Alguma coisa nele me parece familiar.
ResponderExcluirAbraços.
Eu não sei. Confesso que não sei mesmo.
ResponderExcluir