sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

NAS MONTANHAS



Todos os anos, no começo do verão, procuro o frescor das montanhas para curar-me das ‘desumanas lidas’. Entre matas, bananais e cafezais, corcoveio Mantiqueira acima, deixando para trás o baixio calorento e aporto em Maria da Fé, que parece ansiosa pela minha chegada. É lá em cima, no “Teto de Minas”, que costumo me refugiar e onde passo alguns dos meus melhores dias. Mal chego, vou reto a um restaurante onde me farto de jiló frito, quiabo, frango, couve, tutu acebolado e o indefectível e crocante torresmo, que somente os mineiros sabem fazer. Há também variados doces, e muitos queijos – carregados de “sotaque”, é claro. Lá não vi pão de queijo, que ‘não é tão mineiro’ conforme se apregoa, mas tem broas de fubá.

O povo de lá, como bom mineiro, é desconfiado e tem curiosidade. Quer saber de onde vem, o que faz e o que pretende ali, mas espera pacientemente que o turista diga por si. Bem diferente de uns “caboclos” que conheço de outros verões e que encharcam de perguntação como: “Onde mora? veio sozinho? é casado? Tem quantos filhos? Essa aí é a sua primeira ou a segunda mulher? Cadê a ‘outra’? Esse carro é seu? Quanto custou? O que faz? Quanto ganha? (...)” Não, o povo a quem tenho prazer de visitar não comete tais deselegâncias. Discreto, gosta de conversar, mas sem perguntas.

Em sonolentas tardes de sol, o tempo parece correr mais devagar para aqueles montanheses. De chapéu surrado, homens rurais permanecem por longas horas nos bancos das praças ao abrigo de centenárias oliveiras, soltando fumaça de seu cigarrinho de palha, pensando na vida. Também há desses nos bares, mas em animadas rodas com os jovens, bebericando uma cachacinha, petiscando mandioca frita.
 
Mas o verão, que a todos vaporiza aqui nas ‘planícies’, torna-se suave outono na montanha. Lá as noites são frescas, quase frias, não se usam ventiladores e o edredom deve estar a postos, pois um ‘golpe de ar frio’ pode ‘constipar’ os incautos.

Ainda em noite escura, canários-da-terra já anunciam um fiapo de alvorada. Na padaria ao lado, a primeira fornada fica assada e o cheiro de pão fresco invade o ambiente, misturando-se ao canto de outros assanhados pássaros, tornando ainda mais idílico esse paraíso. Lá no horizonte, já surgem os primeiros laivos dourados celebrando a nascente manhã igualmente luminosa. Logo mais, as charretes dos leiteiros passarão com seus cavalos martelando o chão de pedra dessas ruas estreitas. E o verdureiro encostará sua caminhoneta próximo à pousada, donde sairão apressadas sacolas com legumes, verduras, frutas. A cidade, enfim, está acordando.

É domingo. Ao longe, o sino da matriz, em dolentes badaladas, chama os fiéis para a primeira missa. Um destaque da arquitetura da cidade e tombada pelo Condephaat, a igreja matriz tem estilo eclético com mesclas de neogótico. Seu interior é ricamente decorado com magníficas pinturas e soberbas colunas com motivos romanos. Ali também se encontra a imagem da negra beata Nhá Chica, ícone do devocionário católico sul-mineiro.

Mas essa terna e pacata cidade mineira exibe uma ferida incicatrizável. Em 1950, um jovem padre, filho de lavradores, foi covardemente assassinado dentro da igreja matriz. Após a missa matinal na capela da Senhora do Rosário, o sacerdote fora abordado por um estranho, com quem lutou e foi vencido. Como testemunho daquela tragédia, um dos sete projéteis disparados contra o pobre sacerdote deixou indelével marca no mármore do altar da santa.


FILIPE

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