Todos os anos, no começo do
verão, procuro o frescor das montanhas para curar-me das ‘desumanas lidas’.
Entre matas, bananais e cafezais, corcoveio Mantiqueira acima, deixando para
trás o baixio calorento e aporto em Maria da Fé, que parece ansiosa pela minha
chegada. É lá em cima, no “Teto de Minas”, que costumo me refugiar e onde passo
alguns dos meus melhores dias. Mal chego, vou reto a um restaurante onde me farto
de jiló frito, quiabo, frango, couve, tutu acebolado e o indefectível e crocante
torresmo, que somente os mineiros sabem fazer. Há também variados doces, e muitos
queijos – carregados de “sotaque”, é claro. Lá não vi pão de queijo, que ‘não é
tão mineiro’ conforme se apregoa, mas tem broas de fubá.
O povo de lá, como bom mineiro, é
desconfiado e tem curiosidade. Quer saber de onde vem, o que faz e o que pretende
ali, mas espera pacientemente que o turista diga por si. Bem diferente de uns “caboclos”
que conheço de outros verões e que encharcam de perguntação como: “Onde cê
mora? Cê veio sozinho? Cê é casado? Tem quantos filhos? Essa aí
é a sua primeira ou a segunda mulher? Cadê a ‘outra’? Esse carro é seu? Quanto
custou? O que cê faz? Quanto cê ganha? (...)” Não, o povo a quem
tenho prazer de visitar não comete tais deselegâncias. Discreto, gosta de
conversar, mas sem perguntas.
Em sonolentas tardes de sol, o
tempo parece correr mais devagar para aqueles montanheses. De chapéu surrado,
homens rurais permanecem por longas horas nos bancos das praças ao abrigo de centenárias
oliveiras, soltando fumaça de seu cigarrinho de palha, pensando na vida. Também
há desses nos bares, mas em animadas rodas com os jovens, bebericando uma
cachacinha, petiscando mandioca frita.
Mas o verão, que a todos vaporiza
aqui nas ‘planícies’, torna-se suave outono na montanha. Lá as noites são frescas,
quase frias, não se usam ventiladores e o edredom deve estar a postos, pois um
‘golpe de ar frio’ pode ‘constipar’ os incautos.
Ainda em noite escura, canários-da-terra
já anunciam um fiapo de alvorada. Na padaria ao lado, a primeira fornada fica
assada e o cheiro de pão fresco invade o ambiente, misturando-se ao canto de
outros assanhados pássaros, tornando ainda mais idílico esse paraíso. Lá no
horizonte, já surgem os primeiros laivos dourados celebrando a nascente manhã
igualmente luminosa. Logo mais, as charretes dos leiteiros passarão com seus
cavalos martelando o chão de pedra dessas ruas estreitas. E o verdureiro
encostará sua caminhoneta próximo à pousada, donde sairão apressadas sacolas
com legumes, verduras, frutas. A cidade, enfim, está acordando.
É domingo. Ao longe, o sino da
matriz, em dolentes badaladas, chama os fiéis para a primeira missa. Um destaque
da arquitetura da cidade e tombada pelo Condephaat, a igreja matriz tem estilo
eclético com mesclas de neogótico. Seu interior é ricamente decorado com
magníficas pinturas e soberbas colunas com motivos romanos. Ali também se
encontra a imagem da negra beata Nhá Chica, ícone do devocionário católico
sul-mineiro.
Mas essa terna e pacata cidade mineira
exibe uma ferida incicatrizável. Em 1950, um jovem padre, filho de lavradores, foi
covardemente assassinado dentro da igreja matriz. Após a missa matinal na
capela da Senhora do Rosário, o sacerdote fora abordado por um estranho, com
quem lutou e foi vencido. Como testemunho daquela tragédia, um dos sete
projéteis disparados contra o pobre sacerdote deixou indelével marca no mármore
do altar da santa.
FILIPE
Nenhum comentário:
Postar um comentário