De vez em quando o vejo na rua. Já
me disse o nome – completo, como manda a boa educação à antiga –, mas esqueci e
tenho vergonha de perguntar novamente. Anteontem mesmo o vi por um breve
instante. Da primeira vez que nos encontramos, eu caminhava distraidamente quando
ia passando por ele, mas algo me chamou atenção e puxei assunto.
Homem de muitos dias, ele é alto,
magro, usa chapéu de palha e chinelas, com bastante dificuldade para andar.
Perguntei-lhe os anos: “Setenta e quatro!”, respondeu com um sorriso,
expressando o sabor de quem sabe envelhecer. Pensando que tivesse mais, fiquei
espantado com sua “juventude”.
Mas o que há de peculiar naquele senhor
de passadas trôpegas são o otimismo e as muitas frases recheadas de ‘palavrões’.
Portanto, peço às retinas mais puras e sensíveis, que abandonem esta leitura ou
pulem para o último parágrafo, porque algumas expressões indecorosas insertas
aqui poderão lhes afetar o pudor e o humor.
Anteontem, mesmo não estando no
melhor momento, o amigo não “fez feio”. Provoquei-o com: “Que calor, hein?” Ele
rebateu: “Ah, tá quente mesmo, mas tudo que Deus manda é bom, né? ‘Puta vida!...’
Tudo que Deus manda é ótimo! Esse vento então..., esse ar fresco. A água, a cerveja...
Quer coisa melhor do que cerveja?!” Entre gargalhadas nos despedimos: ele para
os lados de cima da rua e eu para casa.
Mas um bom momento dele eu peguei
há uns tempos, talvez três semanas atrás. Eu vinha da missa em ‘estado de
graça’, conforme se diz de quem experimentou algum enlevo espiritual. Havia
chovido uma chuvinha mansa, fina e a terra estava molhada. Nisto, avisto na
ponta da rua o amigo, que vinha ao meu encontro. Chegando, cumprimentei-o, como
ainda costumam fazer os bem-educados. “Como vai o senhor?” Ele tirou o cigarro
da boca, deu uma boa cuspida e respondeu: “Estou ótimo!” Continuei: “Depois de
uma bela chuva dessas, até os passarinhos estão sorridentes, não?” Ele: ”Puta
que pariu! Gosto de tudo o que Deus manda: pode ser chuva, sol, calor, frio...
Eu gosto de tudo mesmo. Porque, ‘puta que pariu’, como Deus é bom!”.
Adolescente, tive um vizinho que
gostava muito de passarinho. Bom, ele dizia que gostava, mas mantinha os coitadinhos
sempre na gaiola... Isso é gostar de passarinho?! Mas o que interessa é que, dentre
os ‘penados’, havia um canário-da-terra muito bom. E o vizinho sempre dizia: “Esse
canarim é ‘fedaputa’ de bom pra cantá!”
Na minha casa, tivemos uma
educação rígida e não nos era permitida a linguagem chula. De meus pais nunca
se ouviu qualquer impropério, embora este escrevinhador tenha dado algumas
escorregadas – como um “zé da puta”
contra o irmão mais velho, embora até hoje eu não saiba o significado disso.
Contudo, o decoro linguístico é
relativamente novo na civilização. Até fins da Idade Média, os costumes eram
lassos e a linguagem não tinha regras de etiqueta. Expressões ou palavras que
hoje consideramos ‘pesadas’ eram livremente empregadas em refinada literatura
daquele tempo. Da mesma forma, a despeito de uma linguagem hipoteticamente
“chula”, aquele meu amigo faz uma peculiar prece, expressando profunda gratidão
a Deus.
FILIPE
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