sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

PALAVRÕES


De vez em quando o vejo na rua. Já me disse o nome – completo, como manda a boa educação à antiga –, mas esqueci e tenho vergonha de perguntar novamente. Anteontem mesmo o vi por um breve instante. Da primeira vez que nos encontramos, eu caminhava distraidamente quando ia passando por ele, mas algo me chamou atenção e puxei assunto.

Homem de muitos dias, ele é alto, magro, usa chapéu de palha e chinelas, com bastante dificuldade para andar. Perguntei-lhe os anos: “Setenta e quatro!”, respondeu com um sorriso, expressando o sabor de quem sabe envelhecer. Pensando que tivesse mais, fiquei espantado com sua “juventude”.

Mas o que há de peculiar naquele senhor de passadas trôpegas são o otimismo e as muitas frases recheadas de ‘palavrões’. Portanto, peço às retinas mais puras e sensíveis, que abandonem esta leitura ou pulem para o último parágrafo, porque algumas expressões indecorosas insertas aqui poderão lhes afetar o pudor e o humor.

Anteontem, mesmo não estando no melhor momento, o amigo não “fez feio”. Provoquei-o com: “Que calor, hein?” Ele rebateu: “Ah, tá quente mesmo, mas tudo que Deus manda é bom, né? ‘Puta vida!...’ Tudo que Deus manda é ótimo! Esse vento então..., esse ar fresco. A água, a cerveja... Quer coisa melhor do que cerveja?!” Entre gargalhadas nos despedimos: ele para os lados de cima da rua e eu para casa.

Mas um bom momento dele eu peguei há uns tempos, talvez três semanas atrás. Eu vinha da missa em ‘estado de graça’, conforme se diz de quem experimentou algum enlevo espiritual. Havia chovido uma chuvinha mansa, fina e a terra estava molhada. Nisto, avisto na ponta da rua o amigo, que vinha ao meu encontro. Chegando, cumprimentei-o, como ainda costumam fazer os bem-educados. “Como vai o senhor?” Ele tirou o cigarro da boca, deu uma boa cuspida e respondeu: “Estou ótimo!” Continuei: “Depois de uma bela chuva dessas, até os passarinhos estão sorridentes, não?” Ele: ”Puta que pariu! Gosto de tudo o que Deus manda: pode ser chuva, sol, calor, frio... Eu gosto de tudo mesmo. Porque, ‘puta que pariu’, como Deus é bom!”.

Adolescente, tive um vizinho que gostava muito de passarinho. Bom, ele dizia que gostava, mas mantinha os coitadinhos sempre na gaiola... Isso é gostar de passarinho?! Mas o que interessa é que, dentre os ‘penados’, havia um canário-da-terra muito bom. E o vizinho sempre dizia: “Esse canarim é ‘fedaputa’ de bom pra cantá!”

Na minha casa, tivemos uma educação rígida e não nos era permitida a linguagem chula. De meus pais nunca se ouviu qualquer impropério, embora este escrevinhador tenha dado algumas escorregadas – como um “zé da puta” contra o irmão mais velho, embora até hoje eu não saiba o significado disso.

Contudo, o decoro linguístico é relativamente novo na civilização. Até fins da Idade Média, os costumes eram lassos e a linguagem não tinha regras de etiqueta. Expressões ou palavras que hoje consideramos ‘pesadas’ eram livremente empregadas em refinada literatura daquele tempo. Da mesma forma, a despeito de uma linguagem hipoteticamente “chula”, aquele meu amigo faz uma peculiar prece, expressando profunda gratidão a Deus.

FILIPE

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