sábado, 11 de março de 2023

ESCRAVIZADOS

 

Em certa ocasião, ainda nos meus “verdes anos”, estava de passagem por Ouro Preto e tencionava ir a Ponte Nova. Parece que não havia rodoviária na cidade e eu tive de esperar o ônibus na rodovia. Mal chegara ao local, uma caminhonete parou e o motorista perguntou qual seria meu destino. Respondi que não tinha parada certa, mas iria a Ponte Nova. De lá, seguiria para outras cidades e meu último porto seria Juiz de Fora. Entrei na caminhonete já preocupado em ter que puxar assunto como forma de pagamento pela carona. Não foi difícil. Conversa vai, conversa vem, ele me disse que tinha fazenda em Mato Grosso e que estava à procura de trabalhadores. O ordenado era equivalente a uns três salários mínimos – nada mal para aqueles tempos bicudos de início dos anos oitenta.

Naquele tempo, eu tentava ganhar a vida mascateando pulseiras de relógio e percorria várias cidades da Zona da Mata e do Sul de Minas Gerais. Embora meu trabalho fosse precário, desconfiei da oferta tentadora e não quis me aventurar nas terras mato-grossenses.

Já passados quarenta anos daquele episódio, vem-me a certeza de que a empreitada seria uma cilada para jovens desempregados. Eu teria sido escravizado numa fazenda e meu destino seria muito incerto. Pelo que leio no noticiário, o agenciamento de trabalhadores para ‘cativeiro’ segue um roteiro como aquele dos anos oitenta. Salário generoso, alojamento, alimentação, transporte...  e uma observação: “todo mundo quer emprego, mas ninguém quer trabalhar”.

Conheço bem os escravizados ou semiescravos. Na infância convivi com pessoas nessa situação, particularmente os lavradores meeiros. Nessa modalidade de servidão, muitas vezes o lavrador é quem preparava a terra, semeava, cultivava e depois, na colheita, o dono da fazenda só aparecia para abocanhar a metade. Ainda: se o meeiro morasse na fazenda, sua obrigação era de ajudar o patrão a plantar toda a lavoura dele.  Depois que aquelas roças fossem preparadas é que o empregado ficaria liberado para cuidar de seu roçado – muitas vezes em solo bruto, pedregoso, infértil e distante; ao dono eram reservadas as melhores terras.

E tem mais. O empregado ganhava uma merreca pelo dia trabalhado nas roças do ‘seu senhor’ e as condições eram deprimentes. Descalço e de roupas rotas, ele levava de casa um caldeirãozinho de comida rala da qual se servia fria sentado no cabo da enxada sob o sol quente. O patrão não lhe oferecia sequer um cafezinho.

Se o sertanejo alcançasse a velhice, que lhe vinha precoce, por volta dos cinquenta e poucos anos, ele seria dispensado. Alquebrado, maltratado pelos sóis e chuvas intermitentes, o “homem velho” não aguentaria mais um verão na fazenda. Então sua choupana deveria ser desocupada e nela se instalaria ‘outros braços’, agora jovens e fortes.

Naqueles tempos longínquos, o homem do campo não se aposentava. Improdutivo e doente, passava seus últimos dias vivendo de caridade na casa de parentes ou, com sorte, findaria na tal “vila dos pobres”.

Ironicamente, foi na ditadura militar que a sorte do sertanejo começou a melhorar. Em 1971, Emílio Médici, o mais sanguinário dos ditadores, concedeu ao trabalhador rural (homem e com 65 anos) o benefício de meio salário mínimo (200 reais atualizados). Após a Constituição de 1988, homens e mulheres do campo puderam se aposentar com um salário mínimo (ela aos 55 anos, e ele aos 60 anos).

FILIPE

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