sábado, 25 de março de 2023

O RELÓGIO

 


O relógio acima ficou famoso não por ser raro e caro, mas pelo enredo em torno dele. Como no planeta há apenas 25 exemplares desse modelo, seu preço deve ser ‘um pouquinho maior’ do que os ‘oitocentos mil reais’ anunciados.

Se eu pudesse, escreveria sobre esse relógio mecânico, cuja corda dá autonomia e precisão por nove dias. Nele tem ouro, safira até couro de jacaré, e sua marca eu nem consigo pronunciar. No entanto, vou falar de minha experiência e frustração com outro relógio.

Na infância, e já entrando na adolescência, meu maior sonho era ter um relógio de pulso. Poderia ser um bem vagabundo, contanto que marcasse as horas eu já estaria satisfeito. Naquela época, a marca mais famosa para nós, simples campesinos, era a Mondaine. Como jamais eu poderia comprar um Mondaine, resolvi procurar outro, desde que coubesse no meu pobre orçamento. E a coisa se deu da seguinte forma.

Estava eu na casa de uma senhora muito querida que morava com um homem bastante malandro nos negócios. Por razões óbvias, vou omitir o nome daquela senhora, que por acaso era minha avó (oh, não falei o nome!). Do nada, aquele senhor resolveu me mostrar sua coleção de relógios de pulso. Ele tinha vários modelos, de todos os tamanhos e para todos os gostos. Peguei um, pus no pulso, peguei outro e experimentei também, e aquilo foi me deixando fascinado. Por fim, e sem saber com qual eu ficaria, vi um de pulseira metálica e mostrador reluzente e perguntei o preço. “Qualquer um eu faço por ‘cem’, pode escolher”. Agora não me pergunte ‘cem o quê...’, porque não lembro qual era a moeda naquele tempo. Sei que eu teria de vender um saco de feijão, que eu não tinha, para poder pagar o relógio, que eu queria ter.

O homem me confiou o relógio e voltei para casa com ele no pulso. Eu estava feliz, mas muito preocupado em como conseguir o saco de feijão para pagar aquela dívida. Mas a minha preocupação aumentou: o relógio não funcionava e eu teria que levá-lo ao relojoeiro para, nas palavras do negociante, “uma pequena limpeza”. Foi o que fiz logo em seguida. Mas o homem que consertava relógio, um soldado da polícia militar, não me deu o orçamento na hora e pediu para eu voltar na semana seguinte. Ansioso para pagar o relógio, corri atrás do feijão de que eu precisava. Nem lembro como fiz, mas deu certo. Acho que meus irmãos mais novos me ajudaram na empreitada, catando uma espécie de xepa nos roçados da vizinhança.

Conseguido o feijão, paguei o relógio e agora teria de arrumar dinheiro para pagar o conserto, que não deveria ser barato. Na oficina, assim que o relojoeiro me viu, ele abriu uma gaveta, pegou o relógio e me entregou.  Recebi o relógio tomado de contentamento, mas temeroso do valor que teria de pagar. Perguntei o preço do conserto e o homem respondeu: “Nada!” Estupefato, falei: “Uai, o senhor não vai me cobrar nada?!” O homem foi direto: “Esse relógio é da marca Megalo, e isso não tem conserto. Pode jogar fora”. “!?”

Em casa, fui aconselhado a devolver o relógio e pegar meu dinheiro de volta, mas eu pensava que o risco fazia parte do negócio e fiquei no prejuízo. Hoje, por razões pouco louváveis e nada republicanas, há gente sendo obrigada a devolver um relógio: aquele que ilustra essa crônica.  

FILIPE


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