A casa está vazia: mamãe no
hospital e papai nas “Alturas”. Aqui tudo está virando um passado, que chega
muito apressado.
Esta noite passei no quarto de
minha mãe e dormi na cama que foi de meu pai. Tive uma noite tranquila, de sono
sereno. Eu estava bastante cansado depois de quatro noites de insônia ou de
sono precário e precisava dormir. Foi então nos aposentos paternos que tive o ‘sono
bom dos bons filhos’.
No momento em que me ponho a
“rabiscar estas mal traçadas” – aqui usando esse termo bastante puído, e brega
–, uma tímida aurora afasta as últimas trevas, restando ainda uma ave noturna
em tristes gorjeios. Uma corruíra já canta alegremente numa árvore ao lado da
casa e lá no pasto, bem ao longe, vozes de joões-tenenéns, quero-queros, joões-de-barro
e outros cantares que não consigo identificar ensaiam um promissor recital. Até
um galo garboso, orgulhoso de seu harém, rasga a garganta lá pelas bandas da
lagoa. O dia avança e domina.
Sentado à mesa de granito, sobre
a qual papai carteava com as netas, enxergo um pequeno memorial do Velho. À
meia-luz, posso ver fixados numa parede a bengala, um cinto, a tesoura com que
ele cortava cabelo dos filhos e compadres, o aparelho de barbear e um
carregador de celular. Já a mesinha onde ele punha o notebook não está mais
ali, e o seu guarda-roupa migrou do quarto para cá. Dentro dele há ainda muitos
de seus pertences. Na parede, à minha frente, há uma foto antiga em que papai e
mamãe, ainda bem moços, celebram suas Bodas de Prata. Ela, com o caçula no colo,
e ele, de mãos cruzadas – ambos olhando fixamente para a câmera.
Como se vê, neste Sábado de
Aleluia tudo parece ser alegria. A natureza festeja após uma noite de chuva
fina e intensa. Para este escriba, no entanto, o dia está cinzento. A varanda
vazia da presença de meu pai e o quarto vazio da presença de minha mãe são
motivos de tristeza profunda.
Aquele hospital, com quartos
abafados e paredes frias, não me afligem. Mamãe está lá mais uma vez depois de
tantas idas; um ano atrás, papai lá se hospedara por uma única vez e de lá não
voltou mais. Gosto de estar naquelas enfermarias, porque ali sinto a presença
de meu pai. Eu o vejo caminhando pelos intermináveis corredores e posso vê-lo
subindo ou descendo as emborrachadas rampas, com suas longas mãos deslizando
nos corrimões. Meu Velho está lá, e não aqui nesta varanda, que foi tanto dele.
Esta varanda, esta casa, este
sítio e os montes que o rodeiam, e até as nuvens e o céu noturno estrelado –
tudo isso, antes tão meus – estão virando uma folha de jornal que foi lida e
relida. E agora, já amarelado, este “jornal” será para sempre guardado. Repouse
em paz, ó passado, e não me desassossegue!
Os tais “escaninhos da memória”,
conforme querem os pretensos poetas, serão os guardiães dessas reminiscências. Sim,
porque papai já se foi, mamãe não tarda e eu já preparo minha trouxa. E, sem
delongas, preciso me despedir desse outrora doce recanto, porque, como bem disse
Belchior, “o passado é uma roupa que não nos serve mais”.
FILIPE
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