Numa tarde úmida e quente eu andava com meus cães pela redondeza
quando, a certa altura, avistei uma pequena criatura atravessando a rua
apressadamente. Era uma cobrinha que, abrasada pelo asfalto fumegante, buscava
asilo junto ao matagal que margeia a rua. Os cães, curiosamente, não
despertaram interesse por aquele réptil, mas eu, sim, e fiz a foto que abre
esta crônica.
Ao retornar do passeio, pesquisei na internet e descobri que
aquela “menina” é a ‘muçurana’ – uma cobra do bem que, além de não ser peçonhenta,
devora todas as suas “primas”, venenosas ou não, exceto a temível
coral-verdadeira.
O dia seguinte começou com um mormaço. Eu já havia encerrado o
chimarrão, terminado as leituras e preces matinais e retomava meu trabalho com
sucatas de madeira – mania que adquiri nesta minha incipiente velhice.
Nota: A descrição a seguir não se recomenda a almas mais sensíveis,
porque há nela cenas de desmedida violência.
E naquela manhã plácida e morna, enquanto eu media, riscava e
cortava pedaços de tábua, uma cobra passava a poucos palmos de meus pés. Ela
deslizava lentamente sobre o gramado, depois alcançou uma área de ladrilho e
seguia seu curso. Olhei do lado, procurando um pau para matá-la, mas não
encontrei nada adequado. Como ela parecia bastante tranquila, pude me afastar
dali para procurar uma “arma” mais eficaz e achei um rodo velho, que me foi de
boa serventia. Quebrei aquele rodo, deixando uma parte para servir de gancho e
fui à luta com o bicho.
Aproximei-me sorrateiro e dei uma pancada, acertando-a de raspão,
fazendo com que ela se apressasse. Bati outra vez, e desta vez rompi seu
abdome, mas ela não desistiu da fuga, arrastando as vísceras em seu trajeto
sinuoso. Eu não tinha alternativa porque aquela era uma cobra-coral e
possivelmente peçonhenta. A experiência me ensinou que, mesmo confiando no meu
Anjo da Guarda, devo ser bastante cauteloso com as serpentes. A prova disso é
meu pai, ele um homem de muitas rezas, que certa vez teve de ir ao hospital por
ter sido “ofendido” por uma jararaca.
Como apenas especialistas são capazes de distinguir uma
falsa-coral de uma coral-verdadeira, eu, não sendo especialista em nada,
teria que dar cabo daquela desinfeliz. E assim, bato daqui, ela foge para ali;
puxo pra cá, ela foge pra lá e, de bordoada em bordoada, continuei a luta. Mas
a poucos centímetros à frente dessa arena, há uma casinha com um motor e foi
ali que ela entrou e se enroscou. Abri a portinhola e vi uma pequena parte de
seu corpo embaixo do motor. Dei uma cutucada e ela se movimentou, levantando a
cabeça a uns bons centímetros do solo. Agora ficou fácil pra mim. Com o gancho
do que restara do rodo, consegui puxá-la para um lugar seguro e dei fim à sua
agonia.
Confesso minha tristeza por tudo aquilo que fiz. Sempre que posso,
evito matar bichinhos. Até as moscas, que tanto me perturbam, tento afugentar
pacificamente, e só uso a raquete elétrica quando sou desafiado. Mas com as
corais não se brinca porque elas são perigosíssimas e têm poucos predadores,
talvez apenas o gambá e a seriema. Como os gambás são implacavelmente mortos
por gente ignorante e as seriemas costumam virar guisado por caçadores
inescrupulosos, as cobras-corais estão aumentando.
Numa noite dessas, depois da triste saga da coral, encontrei uma
sua ‘parenta’ (talvez muçurana) à porta da cozinha. Agora deu muito certo para
essa, que escapou do ‘cabo do rodo’ assim que notou a minha presença. Deu certo
para mim também, que, embora preocupado, fui dormir feliz.
FILIPE
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