sábado, 6 de janeiro de 2024

MUÇURANA

 


Numa tarde úmida e quente eu andava com meus cães pela redondeza quando, a certa altura, avistei uma pequena criatura atravessando a rua apressadamente. Era uma cobrinha que, abrasada pelo asfalto fumegante, buscava asilo junto ao matagal que margeia a rua. Os cães, curiosamente, não despertaram interesse por aquele réptil, mas eu, sim, e fiz a foto que abre esta crônica. 

Ao retornar do passeio, pesquisei na internet e descobri que aquela “menina” é a ‘muçurana’ – uma cobra do bem que, além de não ser peçonhenta, devora todas as suas “primas”, venenosas ou não, exceto a temível coral-verdadeira. 

O dia seguinte começou com um mormaço. Eu já havia encerrado o chimarrão, terminado as leituras e preces matinais e retomava meu trabalho com sucatas de madeira – mania que adquiri nesta minha incipiente velhice. 

Nota: A descrição a seguir não se recomenda a almas mais sensíveis, porque há nela cenas de desmedida violência. 

E naquela manhã plácida e morna, enquanto eu media, riscava e cortava pedaços de tábua, uma cobra passava a poucos palmos de meus pés. Ela deslizava lentamente sobre o gramado, depois alcançou uma área de ladrilho e seguia seu curso. Olhei do lado, procurando um pau para matá-la, mas não encontrei nada adequado. Como ela parecia bastante tranquila, pude me afastar dali para procurar uma “arma” mais eficaz e achei um rodo velho, que me foi de boa serventia. Quebrei aquele rodo, deixando uma parte para servir de gancho e fui à luta com o bicho. 

Aproximei-me sorrateiro e dei uma pancada, acertando-a de raspão, fazendo com que ela se apressasse. Bati outra vez, e desta vez rompi seu abdome, mas ela não desistiu da fuga, arrastando as vísceras em seu trajeto sinuoso. Eu não tinha alternativa porque aquela era uma cobra-coral e possivelmente peçonhenta. A experiência me ensinou que, mesmo confiando no meu Anjo da Guarda, devo ser bastante cauteloso com as serpentes. A prova disso é meu pai, ele um homem de muitas rezas, que certa vez teve de ir ao hospital por ter sido “ofendido” por uma jararaca. 

Como apenas especialistas são capazes de distinguir uma falsa-coral de uma coral-verdadeira, eu,  não sendo especialista em nada, teria que dar cabo daquela desinfeliz. E assim, bato daqui, ela foge para ali; puxo pra cá, ela foge pra lá e, de bordoada em bordoada, continuei a luta. Mas a poucos centímetros à frente dessa arena, há uma casinha com um motor e foi ali que ela entrou e se enroscou. Abri a portinhola e vi uma pequena parte de seu corpo embaixo do motor. Dei uma cutucada e ela se movimentou, levantando a cabeça a uns bons centímetros do solo. Agora ficou fácil pra mim. Com o gancho do que restara do rodo, consegui puxá-la para um lugar seguro e dei fim à sua agonia. 

Confesso minha tristeza por tudo aquilo que fiz. Sempre que posso, evito matar bichinhos. Até as moscas, que tanto me perturbam, tento afugentar pacificamente, e só uso a raquete elétrica quando sou desafiado. Mas com as corais não se brinca porque elas são perigosíssimas e têm poucos predadores, talvez apenas o gambá e a seriema. Como os gambás são implacavelmente mortos por gente ignorante e as seriemas costumam virar guisado por caçadores inescrupulosos, as cobras-corais estão aumentando. 

Numa noite dessas, depois da triste saga da coral, encontrei uma sua ‘parenta’ (talvez muçurana) à porta da cozinha. Agora deu muito certo para essa, que escapou do ‘cabo do rodo’ assim que notou a minha presença. Deu certo para mim também, que, embora preocupado, fui dormir feliz. 

FILIPE


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