sábado, 20 de julho de 2024

DONA FIA


 

Numa manhã fria deste inverno, era sábado, desci do táxi, apertei a campainha e resolvi chamar também, que era pra garantir que eu estava ali. Tenho uma regra não escrita: não se deve apertar a campainha mais de uma vez. Se for algo urgente, aperte a segunda vez; caso não seja atendido, dê sossego, não seja inconveniente, caia fora!  

Dessa vez, nem precisei chamar novamente, porque a bondosa senhora já veio descendo lentamente a escada. Como boa mineira que é, chegou cabreira e, ao me reconhecer, um sorriso desanuviou-lhe o semblante. Eu fiquei orgulhoso de ser reconhecido pela dona Fia, abobado mesmo, e explico o porquê, mas ao final da crônica.

A dona Fia abriu o portão e me convidou pra entrar.  Aceitei, é claro, mas com a ressalva de que seria por apenas uns minutinhos. Fomos subindo devagarinho enquanto ela falava do frio e da nova rotina, agora sem o companheiro de vida por mais de setenta anos.

Primo de meu avô materno, seu esposo era um homem de hábitos finos, poucas palavras e grande sabença. Na última vez que os visitei, embora adoentado, ele estava muito alegre e receptivo. Engatamos uma prosa sobre o antigo casarão que pertenceu à família, mas fomos interrompidos pela campainha. Pensando que fosse algo rápido, pediu licença pra atender, mas a visita pôs fim à nossa conversa, me deixando bastante frustrado.

De volta à dona Fia. Terminado de subir a longa escada, fomos direto pra cozinha. Mineiros são assim: recebem pessoas próximas na cozinha; a sala é mais solene e serve para alguém sem a intimidade da casa, como aquela visita já citada acima.  Diante de mim havia uma mesa farta com tudo de bom: café, leite, chá, pão, bolo, queijo etc.

“Tome um café...” “Obrigado. Não tomo café.” “Então tome um chá...  Tem pão, bolo... Experimente esse queijo.” Comi um pedaço de queijo e ataquei o bolo, mas que bolo! “Quem fez o bolo?” “Eu!”. Comi outro pedaço, mas de guloso, porque eu estava de bucho cheio. Assim que “apeei” do ônibus na rodoviária, fui a uma lanchonete e peguei um achocolatado e um baita pedaço de bolo de fubá.

A dona Fia queria que eu sentasse e esperasse pelos filhos, mas eu tinha pressa e um táxi me esperando. Ela lamentou: “Que pena... Você poderia ficar para o almoço. Quando voltar aqui, venha sem pressa, venha almoçar e se quiser ficar, há muitos quartos nesta casa. Moro sozinha, mas uma filha fica comigo à noite. Ela está viajando, e de tardinha já deve chegar. Eu nunca estou só. Meus filhos são muito bons pra mim, volta e meia estão aqui. Agora mesmo saiu um. Acho que você até encontrou com ele por aí, não?... Ele acabou de sair e você chegou.” “Não, não vi e acho que também não reconheço. Faz tempos que não vejo seus filhos.”

Conversa vai, conversa vem, o tempo foi passando e o amigo taxista lá embaixo me esperando. Mas deu tempo pra falar de muita coisa naqueles dez ou quinze minutos. “Seu nome é Eva, né?... Por que Fia?” “Ah, quando menina, meus irmãos começaram a me chamar de Vininha. Não gostei. Depois começaram com Vinica. Não gostei também.  Então papai falou pra me chamar de Fia. Eu achei que era bubiça ficar reclamando e aceitei.”

A dona Fia é dessas mulheres maravilhosas, que raramente se vê por aí. Ela parece ter saído das páginas de um livro de histórias infantis, daqueles lidos pela nossa primeira professora. Ela é uma senhora com quem a gente se senta e conversa por horas sem se cansar. Para mim ela é como uma tia muito querida – e eu tenho tias muito queridas!

Ah, a dona Fia é muito especial e sempre tive vontade de lhe pedir a bênção. Bença, dona Fia!

FILIPE

sábado, 6 de julho de 2024

O IPÊ-ROSA

 


“Plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro!” Essa seria, na visão de um poeta, a missão de todos ao longo da vida. De minha parte, já plantei algumas árvores, tive uma filha, mas nunca escrevi livro. Por outro lado, meu pai teve muitos filhos, plantou muitas árvores e escreveu três livros. Dessa forma, estou em dívida com a vida; já meu pai cumpriu com folga a missão.

Deixando de lado o poeta e seus anseios, quero falar do ipê cuja foto abre esta crônica. Essa árvore foi plantada no sítio da família onde mora minha irmã mais velha quando completei ‘trinta anos’. Meu pai escolheu o lugar e fez a cova; eu apenas ajustei a plantinha no buraco e apertei a terra ao redor com cuidado para não lhe ferir as incipientes raízes.

Tempos antes, quando fiz dezoito anos, meu pai me pediu para plantar uma árvore. Ele me deu a muda de um abacateiro e me acompanhou ao quintal de sua casa, lá na Montanha Santa, onde o plantamos. Infelizmente, aquele pé de abacate não vingou.

A história do aguerrido ipê começou no início de dezembro de 1991, quando eu terminava a licenciatura na Fundação Santo André. Ansioso com o resultado das provas finais, cheguei apreensivo no dia marcado para a publicação a fim de ver a minha situação. Havia três possibilidades para mim: estaria aprovado, iria para exame ou estaria reprovado. Para minha alegria, fui aprovado em todas as disciplinas. De um aluno mediano como eu, é claro que não se esperaria brilho nas notas. A mim, pouco importava certos louros tão sonhados por tantos. Desejando apenas seguir a vida sem amarras nem pendências escolares, uma clareira se abria para mim naquele dia.  Talvez o jovem leitor não saiba, mas houve tempos em que muitos alunos abandonavam a faculdade em razão das ‘dependências’ que tanto nos fustigavam.

Pois naquela manhã ensolarada de fim de primavera, eu tinha razões para estar muito feliz e não sabia se cantava, se assobiava ou saltitava. Eu não cabia em mim de tanta satisfação. Saindo do prédio da Fundação, descendo uma ladeira entre canteiros de folhagens sob grandes árvores floridas, vi uns homens cuidando daquele jardim. Sem que eu tenha planejado qualquer coisa, me veio de súbito um desejo e resolvi pedir uma plantinha como recordação daquele campus. Poderia ser mudinha de árvore, flor, folhagem, cipó ou até capim. Eu queria uma lembrança da minha faculdade. Então, um daqueles senhores me pediu pra esperar e saiu. Passados uns minutos, ele retornou com uma pequena muda de ipê, que só anos depois soubemos tratar-se de ipê-rosa.

Aquela que fora a menor das plantinhas no quintal da ‘irmã mais velha’, cresceu em silêncio e sem pressa, tornando-se árvore frondosa. Seus galhos folhosos e floridos alcançam as alturas, bem acima da espessa vegetação ao redor, donde sorvem os primeiros raios de sol da manhã.

Naquele derradeiro chão de meus pais, o ipê-rosa guarda consigo a memória de muitos acontecimentos: alegres chegadas, ruidosos encontros, animados festejos e tristes despedidas.

FILIPE