sábado, 24 de agosto de 2024

CÉU FUMARENTO

 


Essa foto eu tirei da varanda de minha casa um minuto antes de abrir o computador para escrever esta crônica.

O sábado, que sempre foi para mim um dia arrebatador, hoje está assim, tristonho, como se vê na imagem. Nas manhãs sabatinas, costumo fazer pequenos vídeos para alguns amigos e parentes, aqueles que me são mais próximos, mas hoje não consegui essa alegria matutina.

Hoje, como sempre, levantei-me bem antes de o dia clarear para as minhas preces, depois veio o chimarrão, as leituras e as músicas.

Este sábado, porém, me veio amargo. As chuvas estão escassas e o dia amanheceu nublado. Seria um bom sinal, né?... Só que não. Acho que essa é a primeira vez que experimento a sensação horrível de um dia nublado e sem nuvens. É algo semelhante a uma plantinha linda, viçosa, mas, chegando bem pertinho dela, percebe-se que é de plástico – a coisa mais sem graça de se ver –, mas com um tempero bem mais trágico.

Justamente no momento em que digito este texto, Tonico e Tinoco cantam “Pingo d’água” na Rádio Cultura de São Paulo. Quem conhece essa música sabe o que estou sentindo e nada poderia ser mais profético do que isso.

Toda essa formação atmosférica adversa, esse clima hostil, tem origem no desmatamento e nas queimadas, principalmente na Amazônia. A devastação naquela região é apocalíptica, sem citar o Pantanal onde o inferno não é menos dantesco. Os denominados ‘rios voadores’, que partem do Norte e trazem chuvas para o Sul, agora viraram ‘rios de fumaça e de fuligem’.

Moro num lugar privilegiado onde tem ar puro com muito verde, mas é grande o esforço de gente escrota para acabar com essa exuberância. Volta e meia uma árvore é cortada e sua galhada é posta na calçada. A prefeitura, sempre “tão generosa”, estimula o serviço e desloca seus caminhões e homens para remover os ‘restos mortais’ daquelas inocentes criaturas. É dessa forma que o meu bairro vai “se livrando” de goiabeiras, amoreiras, mangueiras e demais árvores frutíferas tão necessárias para nós e a nossa fauna, que agora definha em decorrência dessa insensatez.

Ah se eu tivesse poder, mas teria de ter uma força salomônica, eu deportaria todos os predadores do meio ambiente para... sei lá. Gaza?! Sim, Gaza seria um bom lugar pra esses algozes da Natureza. Toda essa gente que anseia por ver a terra devastada, estéril, calcinada deveria trocar de lugar com o sofrido povo palestino. Que fiquem lá somente os terroristas para receberem os malfeitores daqui. Eles que se entendam com seus pares e não lhes faltarão agudas emoções.

FILIPE


sábado, 17 de agosto de 2024

BANQUINHO DE SUCATA

 


Olha a folga! E eu pensando que tivesse feito esse banquinho pra mim... Que nada! Depois que essas duas figuras chegaram, nunca mais pude sentar ali pra ‘pegar a fresca’ ao entardecer, como eu sempre costumava fazer.

Você que me lê não imagina como é gostoso sentar nesse banco. Ele é feio? É, mas eu não acho. Malfeito? Talvez, mas eu não acho. Esse banco foi feito com madeiras já “aposentadas”, algumas apanhadas na rua. Aliás, esse tem sido meu hobby. Sempre que saio com os cães, não esses pirralhos aí da foto, mas os outros dois, meus velhos companheiros de caminhada, fico bisbilhotando as construções e os rejeitos em seu entorno. A minha alegria é maior quando vejo uma caçamba de sucata. Ali costumo garimpar algumas preciosidades como madeiras descartadas e que iriam para o lixão. Com elas fiz prateleiras, portão, uma espécie de mesa de carpinteiro e até esse banquinho. Também já corri algum risco de ser preso por furto, e risco real! Explico.

O vizinho de baixo estava de mudança. Fazia tempos que a sua família não dava as caras por aqui e muita coisa foi retirada da casa e levada para outro endereço, restando algo que foi deixado na calçada. Aqui preciso explicar a existência de um código de conduta que vale na cidade, nos subúrbios e até nos arrabaldes: “Tudo o que se deixa na calçada é descarte; quem quiser, pode pegar”. E na calçada do vizinho havia uma coisa que me inflou a cobiça: um estrado de cama com as madeiras muito certinhas e lisinhas, do jeito que eu precisava. Todos os dias eu esticava o olho praquelas bandas e pensava: hoje eu pego aquele estrado.

Numa tarde, como de costume, peguei a guia e chamei os cães para a caminhada. Ao passar diante daquela casa, resolvi me aproximar e ver o que mais me interessava além do estrado. Havia dois pedaços de caibro que me seriam de bom uso. Peguei-os e os encostei no meu muro, mas do lado de fora, para a rua, e segui com os cães. Pensei: na volta eu pego o estrado também. Mas o quê?! Quando voltei, o carro do vizinho estava lá, bem ao lado dos “trem”. Entrei mal disfarçando minha frustração, mas aliviado por ter escapado de um provável flagrante. Deixei os dois pauzinhos lá, pensando que eles pudessem ser recuperados pelo homem, mas não foram. No dia seguinte decidi guardar os “meus” pauzinhos, mas o estrado eu não peguei. É preciso ser honesto, né?... Pois fui.

Passados mais uns dois dias, um caminhão estacionou ali e levou tudo. Era mudança mesmo, concluí. Só que não. Outros dois dias se passaram e a família já estava de volta. Ninguém havia mudado e eu querendo surrupiar as coisas deles, pode isso?... Pensei em pôr de volta os dois pauzinhos, mas... Como me serão úteis e ninguém se deu conta deles, fiquei quieto.

Sobre o banco da foto lá em cima, estou proibido de usar. Basta eu me sentar ali, que sou expulso pelo Pitoko. Se bem que eu queria fazer outro banquinho, mas o vizinho não colabora... Ô vida!

FILIPE


sábado, 3 de agosto de 2024

DONA AÍDA, A MINHA PRIMEIRA PROFESSORA

 


Não, eu não queria estar em destaque nessa foto, mas não tive escolha. Isso porque nessa imagem estou pegando na mão da professora que me ensinou as primeiras letras, e eu teria de fazer esse registro aqui. Foi a dona Aída quem me ensinou a pegar o lápis para que eu pudesse fazer meus primeiros rabiscos, desenhando as vogais, algumas consoantes e o meu nome. Foi ela também quem me conduziu ao universo escolar, do qual nunca mais me desvencilhei.

Durante a breve visita àquela senhora, por quem tenho um sentimento filial, a minha memória foi desnovelando cenas de um passado muito distante. Naqueles poucos minutos, pude rever a jovem professora entrando na sala de aula com seus livros, seu sorriso e seu perfume. Depois de um animado boa-tarde, ela escrevia algo no quadro-negro e, em seguida, visitava cada aluno, orientando-os carinhosamente nas lições.

A nossa escola funcionava num velho prédio que meu avô paterno ajudou a construir. A minha sala de aula era um pequeno cômodo no porão, que todos chamavam de “galinheiro” porque ali teria sido dormitório, maternidade e berçário de galinhas. Embora precária, aquela sala de aula tinha o básico: um quadro-negro, que era uma placa de compensado pintada de preto apoiada em dois cavaletes; bancos de madeira rústicos e compridos, acompanhados de mesinhas estreitas com o mesmo comprimento do banco, cabendo em cada “carteira” uns cinco ou seis alunos; mais coisas não tinha, também delas não houve carecimento. Havia nos fundos o pátio – um grande terreiro com algumas árvores frutíferas, dentre elas um abacateiro e um pé de coração-da-índia.  Bem ao lado da nossa sala de aula, ficava a ‘casinha’, que era uma privada sem lavatório nem papel higiênico, para onde os alunos acorriam a fim de resolver suas urgências.

Não tínhamos cartilha para as ‘primeiras letras’ nem outro material didático. As crianças usavam apenas lápis, borracha e um caderninho brochura de 24, 36, 48 ou 60 folhas. A grossura do caderno variava conforme a classe social do aluno. Eu mesmo não me lembro de ter usado um caderno de 60 folhas – um luxo para os mais abastados.

O tema aqui não deveria ser essas reminiscências, mas a dona Aída a quem dedico esta crônica.

Pois então, era uma manhã de sábado, fria e de sol morno, quando apertei a campainha da casa da professora.  O meu amigo taxista, sabendo que eu não demoraria, preferiu esperar no carro. Sem que houvesse a necessidade de apertar a campainha novamente, fui calorosamente recebido pela filha Adaíse e sua matilha. Preocupada, ela me perguntou se eu tinha medo dos cães, afirmando serem eles mansinhos, mas, se preciso, ela daria um jeito. Afastei essa preocupação, dizendo que amo bichinhos e me sinto amado por eles também – desde que não sejam ferozes, é claro. Essa última parte eu não disse, mas nem precisava.

Entramos e me reencontrei com a amada professora. Conversamos um pouco e ela me pareceu muito contente com a visita. Adaíse me contou de sua rotina, dos cuidados com a mãe e da alegria em poder lhe oferecer dignidade nessa fase da vida.  Tendo comigo uma regra de que ‘a acamados a visita não deve passar de dez minutos’, fizemos uma prece e me despedi, deixando aquela casa com a leveza de quem sai de um templo após profunda contemplação.

FILIPE