sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

AFLIÇÕES

“Consoladora dos aflitos, rogai por nós!”

“CONSOLATRIXAFFLICTORVMORAPRONOBIS”. Em latim, tal como transcrevo, a inscrição decora lindamente o altar-mor da igreja matriz da Consolação em São Paulo. Mas quem são os aflitos, de quem emana tão pungente súplica?

A igreja estava quase vazia e uns poucos fiéis assistíamos à missa de meio-dia, num sábado. Com habitual e desnecessária pressa, o celebrante melodiava solitariamente todas as preces, inclusive os Salmos. Naquele momento eu me angustiava, pois a execução de um patrício se fazia iminente. Para além dos mares, do outro lado do planeta, em terras da Indonésia, Marco Archer se preparava para receber no peito a bala fatal. O desafortunado homem não tinha lá grandes méritos, mas contra ele não pesava acusação de ser homicida, pedófilo nem ladrão contumaz. Traficara cocaína. Por justiça, deveria ser mesmo trancafiado numa masmorra até que se reabilitasse. Mas sua condenação foi por demais severa, desumana, cruel, ignominiosa.

O réu fora condenado à morte e permanecera nessa expectativa ao longo de sofridos dez anos. Quase uma dezena de pedidos de clemência foi enviado àquele país pelas autoridades brasileiras, em vão. Mas os bravos defensores da vida intrauterina calaram-se. Por quê?  Será porque, diferentemente de um embrião humano, um criminoso não tem direito à vida?...  Fere-me os tímpanos o espantoso silêncio desses conservadores. Em tempos de eleição, ouvem-se seus (justos) alaridos contra o aborto. Mas agora, nem sequer um trinado se fazia ouvir. Bico calado! 

Voltando ao celebrante, dele se esperava que nos instasse a rezar ao menos uma Ave-Maria pelo condenado, mas não. Preocupou-se em comentar, ao final da missa, a publicidade de uma faculdade que patrocina o folheto litúrgico. Já em sua homilia, fez questão de criminalizar o movimento Catraca-Livre – que luta pelo fim das tarifas de transporte coletivo – sugerindo sê-lo composto de pessoas que não trabalham. Ainda: acusou um de seus membros de espancar uma senhora num ponto de ônibus durante a manifestação. Quem já participou de movimentos sociais ou procura informar-se com algum critério sobre eles, sabe da existência de infiltrados em quaisquer desses eventos. Mas de quem se instrui apenas lendo a revista “Veja” ou assistindo ao “Jornal Nacional”, fica a impressão de ingenuidade ou de atraso mesmo. Não sei se esse é o caso do nosso pregador, mas para ele deixo o benefício de minha incerteza.

Afinal, o que nos aflige? A mim, aflige-me todo tipo de violência: das ações de trombadinhas à truculência policial; do escárnio dos poderosos à hipocrisia de clérigos; da condescendência aos criminosos à negação da misericórdia. Aflige-me a apatia diante da aflição alheia; diante de quem receberá a pena capital.  A morte moral me aflige.


FILIPE

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