Esse era seu nome, mas era por
Tatão Tibúrcio que todos o conhecíamos. Tatão morava na roça, a um quilômetro
de nós, numa casinha simples, como a nossa. Ao lado da irmã, Angelina, cuidava
da mãezinha, dona Sarminda, sobre quem se dizia ter mais de oitenta anos.
Ficou-me a imagem daquela velhinha, negra, magrinha, sempre sentada num
caixote. Passados uns tempos, ela adoeceria e se recolheria à sua cama, para eu
nunca mais vê-la no seu caixote.
O tempo foi passando e passou dona
Sarminda, ficando Tatão e Angelina. Muitas e muitas vezes iríamos ainda àquela
casa. De vez em quando dávamos com “os burros n’água”, pois a Angelina não
gostava de chateação e costumava não nos atender. Ainda ao longe era possível
observá-la à janela, mas ao chegar, já estava bem trancadinha, escondidinha,
fingindo ausência. Podíamos esgoelar, que ela não se mexia. Tarde, porém, a
compreendo e eu não faria diferente.
O Tatão nunca fechava a porta.
Todas as tardes, após chegar do roçado, ele passava as horas sentadinho ali, ao
lado de Veneno, seu cão, fazendo suas orações. Vendo-nos, abria-se num sorriso
e nos convidava a entrar. Chegando, cumpríamos rigorosamente um roteiro por ele
traçado: ir direto ao seu quarto, onde havia um oratório, e lá fazer uma prece.
Em silêncio, ele nos aguardava com indisfarçável alegria.
Devo confessar que, embora eu
rezasse no oratório do Tatão, tinha mais fé nele do que nos seus santos. Para
uma criança – ou adulto, principalmente – nada mais abstrato do que a fé. Esta
parece estar associada a afeto. E como aquele homem era por nós muito querido,
o objeto de sua devoção foi por todos incorporado.
Tatão Tibúrcio tornou-se compadre
de meu pai, tendo como afilhado um de meus irmãos, a quem considerava um filho.
Certa vez, fomos à sua casa bem de tardinha, e a noite veio trazendo consigo um
enorme temporal, com granizo. Todos ficamos atordoados, temendo que telhado e
paredes cedessem à fúria do vento. Mas o Tatão não se abalava e, mantendo no
colo o afilhado, rezava. A certa hora, pegou uma pedrinha de gelo que escapara
das telhas e a deu ao pequeno dizendo: “Se a criança chupar o gelo da chuva, a
tempestade para”. E parou mesmo. Mas naquela noite não voltamos para casa.
Dormimos amontoados numa esteira que Angelina estendera na sala de chão batido.
A irmã mais velha dormiu no quarto da Angelina, e o pequeno com o padrinho, que
não teve lá muita sorte não. Lá pelas tantas, o intestino do menino desandou,
enlameando cama, padrinho e o sossego de todos. Mas o paciente senhor apenas
disse: “Foi barriga mole, coitado”.
Supersticioso, Tatão usava
amuleto no peito e cabeça de boi no chiqueiro. Sempre quis saber o que havia dentro
daquele patuá, que trazia pendido feito medalha. “Aqui tem uma reza para minha
proteção”, ele disse uma vez e me dei por satisfeito. Mas, com a caveira
bovina, fui além. Tentava dissuadi-lo daquela crença ancestral, dizendo ser
pecado etc., mas quem pecou fui eu. Certa feita, após uma rápida conversa,
pensei tê-lo convencido a renunciar a essa “heresia”. Subi na cerca e arranquei
do bambu, onde estava espetada a tal caveira, e a lancei no mato. No dia
seguinte, meu pai me interpelou: “O compadre Tatão me disse, contrariado, que
você tirou a cabeça de boi do chiqueiro dele. Pois trate-se de pô-la onde
estava, viu?” Aquele “viu” me deu um calafrio, algo estranho,
semelhante à “barriga mole” do menino aí em cima. Pus de volta lá o simpático
talismã que, se não salvou os porquinhos do mau-olhado, salvou meu couro.
FILIPE
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