sexta-feira, 17 de abril de 2015

DONA JACIRA


Nos longínquos anos sessenta, a casa da vovó Jacira parecia estar sempre em festa. Os netos, que já começavam a brotar feito cogumelos no começo da “estação das águas”, para lá acorriam em festiva revoada. Os tios, alguns ainda crianças, misturavam-se com a nova remessa de gente pequena para brincar de bolinha de gude, pega-pega ou subir nas centenárias mangueiras que sombreavam o antigo casarão. E a sempre ocupada dona Jacira, com panela no fogo ou lavando roupa na bica, recebia-nos com indizível alegria perguntando: “E lá?” – isto é, como está sua família?

Durante boa parte da vida, aquela aguerrida mulher trabalhou duro na roça plantando milho, arroz e feijão para sustentar seus onze filhos. Meu avô Aurélio vivia sempre “esbarrado, sem expediente”, conforme se dizia de quem era desprovido de ânimos para a lida. Então, era vovó quem assumia a dianteira de tudo na casa. Cuidava dos pequenos, do roçado, do trabalho doméstico e do marido adoentado, que por muitas vezes ficaria internado no Colônia – um manicômio da cidade mineira de Barbacena, de tristes histórias. Cuidava também da mãe, minha bisavó Ritinha, uma senhorinha velhinha, doente e que logo viria a falecer. Foi papai quem lhe fez o caixão, utilizando umas tábuas que ficavam guardadas no paiol, e o forrou com um pano roxo fixado por tachinhas.

Lembro-me nostálgico dessas visitas à vovó com minha nascente família, composta de “apenas” quatro ou cinco irmãos. Os demais, ainda no “ninho da cegonha”, aguardavam ansiosos o alvorecer da vida, que lhes surgiria promissora. Para lá, mamãe nos levava animada e com gosto. Chegávamos para o almoço e ficávamos até a noitinha, quando papai aparecia para nos pegar. Chegando, a vovó lhe dava comida. Após o jantar, ele permanecia por algum tempo sentado num dos grandes bancos que havia na enorme cozinha. Com um terço na mão, o jovem pai começava a cochilar a sua sesta. De repente, dava um salto e bradava: “Mas tá tolo, sô. É só sentar, que começo a dormir... Vamos embora, Juracy, vamos!”. A vovó intervinha: “Coitados dos meninos, compadre. Lá fora, tá fazendo um frio danado, que só  veno! Deixe-os aqui e amanhã eles vão”. (Sempre gostei desta sua marca, quando exprimia espanto, preocupação ou admiração: “só cê veno”. Para os cultos, poderia ser “só você vendo”; para nós, no entanto, a singela expressão da vovó era muito mais bela). Já era tarde quando voltávamos, coisa de oito ou nove horas da noite!

Recentemente, a irmã mais velha me fez recordar um episódio prosaico, mas carregado de simbolismo. A vovó, cozinhando e nos vendo por perto, fazia uma pequena “traquinagem”. Pegava o soquete, com o qual amassava o feijão, e nos dava para lambê-lo.  Depois lavava o soquete, socava mais e repetia o gesto, pedindo para ficarmos “amoitados” atrás da porta da despensa, para que ninguém nos visse. Também, de vez em quando, ela nos presenteava com umas franguinhas – uns pintinhos “recém-desmamados”. E até uma cadelinha, de nome Bonina, ganhamos dela. Normalmente o agraciado com a franguinha era o neto mais velho, ou um aniversariante, que fazia planos mirabolantes. A partir da franguinha, viriam dezenas, centenas, talvez milhares de franguinhos, uma verdadeira fazenda de galináceos. Mas o papai, com a autoridade de provedor da família, apossava da franguinha e dos nossos planos de fazendeiro. “Aqui, ninguém é dono de nada e todos são donos de tudo!” – ouvi certa vez, submisso, essa frase lapidar.

Mas um dia a vovó Jacira separou-se do vovô Aurélio, foi embora e a festa acabou. A casa tornou-se vazia, quase fúnebre, enquanto vovô sorvia, calado e resignado, a amarga desventura.

Passaram-se os anos, meus avós envelheceram e vovó resolveu voltar à velha casa, onde vovô continuava morando – agora com um dos filhos. Ao saber da visita, ele ficou eufórico. Pegou o pequeno embornal que ficava pendurado na porta da despensa, correu à venda, comprou “quitanda” e ele mesmo preparou o café. Vovó chegou tímida, mas solene. E com modos quase aristocráticos, tomou o café em silêncio, sendo observada por ele à distância. Outras vezes ela voltaria ali a passeio, para um dia retornar de vez. Embora optasse por morar num cômodo ao lado da casa, a sua rotina se misturava à do vovô numa fraternal convivência. Conquanto não se falassem, vovó parecia nutrir por ele um carinho, ainda que residual. Dele, ela nunca me disse algo que o desabonasse. Como tínhamos muita proximidade, talvez pelo fato de ela ter assistido o meu parto, conversávamos bastante. Ouvia suas queixas, alguns segredos e quase sempre a exclamação: “Coitado do seu avô!” – àquela altura já debilitado pelo câncer que logo o levaria. Algum tempo depois, acometida pela mesma moléstia, era vovó quem iria.

Separados, vovó Jacira e vovô Aurélio passaram toda a velhice e assim partiram. Mas algo muito nobre, sublime, um raro bem-querer parecia uni-los em vida. Por isso, creio que estejam reconciliados na eternidade. 
NOTA: No alto, casa de meus avós, onde nasci.


FILIPE

Um comentário:

  1. Lindas palavras que nos fazem viajar no tempo mesmo sem está presente nesta época.

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