sexta-feira, 17 de julho de 2020

O CARAPINA


Eu estava preparando um almoço no fogão a lenha, queimando uns restos de madeira usada na obra, e pensava estar ecologicamente correto. Mandei uma foto para o grupo de WhatsApp da família e recebi uma admoestação: “Queimando madeira boa... Com essas tábuas daria para fazer um pinteirinho ou outra coisa qualquer”. Aquela frase me deu uma baita fisgada na espinha, mas tentei consertar: “São sobras da obra e essas madeiras são pínus, que iriam apodrecer”. A minha resposta não convenceu nem a mim nem a ele, eu acho, embora o bom mano tenha se recolhido da observação.

Depois disso, quando ia pegar ‘lenha’, comecei a separar umas tábuas. Olhava uma, olhava outra, antes de decidir qual delas seria “condenada às chamas” do meu fogão. E assim, umas foram escapando e ficando empilhadas à parte. E, precisado que eu estava de uma mesinha para pôr na varanda, decidi improvisar. Peguei aquelas tabuinhas, arranquei os pregos, limpei-as dos restos de concreto e comecei meu labor de carpinteiro amador. Serrote, martelo, um pedaço de piso cerâmico como esquadro e uma furadeira resolveram todos os meus problemas.

Enquanto eu riscava, cortava, pregava e ia montando a mesinha, pensava no meu velho pai que a vida toda sonhou ter uma ‘caixa de ferramentas’. Papai trabalhava como carpinteiro, fazendo engradamento de telhado em toda a redondeza, mas as suas ferramentas eram precárias – hoje eu sei disso.  Ele tinha um serrote do cabo vermelho, que eu usava furtivamente para cortar tudo que encontrava pela frente. Todas as vezes que papai não encontrava uma ferramenta, ou a achava avariada pelo mau uso de um curioso, ficava muito bravo e com razão.

Papai tinha um caixote onde guardava, além do serrote, formões, enxó, martelo, torquês, plaina, colher de pedreiro, prumo e um arco de pua. Mas esse arco de pua era uma coisa muito interessante, que só papai conseguia usar. Gostava de observá-lo pôr a verruma no arco e apoiar no peito uma rodela que girava. Depois, com movimentos circulares, a verruma penetrava a madeira extraindo tiras espiraladas e fazendo um furo. Menino ainda, eu não conseguia a proeza de usar o arco de pua, embora tentasse.

Enquanto eu fazia a minha mesa, ia pensando sobre as dificuldades de meu pai. Ele sempre trazia consigo algum ferimento pelo uso das ferramentas. Como seu rombudo martelo que, teimoso, quase sempre esquivava do prego e lhe acertava o dedo. Houve algo mais sério também com meu pai, como um acidente com o arco de pua. Papai trabalhava na casa de uma de suas irmãs e a verruma pegou seu joelho, deixando-o paralisado por um tempo. Felizmente, horas depois, ele recuperou o movimento da perna e conseguiu caminhar até a casa.

Feita a minha mesa, eis que no dia seguinte recebo um vídeo de uma sobrinha com o meu pai trabalhando como carpinteiro. Com um esquadro e lápis ele riscava em meia-esquadria uma guarnição e depois serrava e pregava e conferia e via que tudo estava certo conforme planejara.

Por alguns segundos e cheio de júbilo, pude ver na tela de meu computador o velho carapina em ação!

FILIPE

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