“Deus abençoe sua boa vontade! Deus lhe pague! Graças a Deus!”, esses
foram os dizeres mais frequentes de minha mãe, que neste ‘vinte e três de maio’
completaria oitenta e cinco anos. Para alguns, tais frases talvez sejam desprovidas
de sentido, podendo até lhes causar certo estranhamento, mas não para quem
conviveu com ela.
Mamãe, ao longo da vida, passou
por diversas fases. Sua personalidade, marcante, foi forjando a vida dos filhos
e de quem mais esteve por perto. Posso falar disso, porque conheci mamãe desde
os tempos em que ela era uma “meninota” de vinte e poucos anos.
De início, lá na juventude, mamãe
foi uma mulher vaidosa, que se maquiava com pó de arroz e ruge. Também usava uma
bolsinha de mão e sombrinha colorida de cabo bem-trabalhado, coisas do tempo de
solteira. No entanto, batom, esmalte e brincos mamãe nunca usou e se irritava
com alguém que lhe oferecesse. Isso ela aprendera com o pai, meu avô Aurélio,
que, para ele, esses luxos seriam vícios de quem não é muito ligado às coisas
de Deus.
Com o tempo, mamãe parou de usar
o pó de arroz, mas tinha um quê com os cabelos, que deveriam estar sempre
longos (nada de tesouras ali!). Houve um tempo em que ela mesma os trançava,
embora as tranças não fossem assim tão bem-feitinhas. Para dar uma caprichada,
mamãe costumava entrelaçar umas fitas coloridas nas madeixas, e papai parecia
gostar do resultado.
O temperamento forte da mamãe
deve ter sido transmitido aos filhos. Não sei de meus irmãos, mas herdei muita
coisa dela; só não herdei a firme devoção aos santos e a fervorosa oração
diária. Mas alguns traços da personalidade de ‘quase incivilidade’ e de
‘dificuldade nas relações’..., vou segredar aqui aos poucos que me leem: isso
eu herdei da minha mãezinha!
Pronto. Confidências feitas,
agora vamos à segunda parte, que é a mais interessante.
Mamãe, ao longo da vida, foi solitária,
soturna e temperamental. Era comum que
se trancasse no quarto onde ela chorava a desventura de ser uma mulher doente e
pobre. Meninos ainda, não entendíamos absolutamente nada do que estaria
acontecendo com ela. Papai estava sempre atento àquilo, mas ele não podia ficar
em casa, porque precisava trabalhar. E assim fomos convivendo com as dores de nossa
mãe durante toda a infância e adolescência.
Quis Deus, porém, que mamãe
experimentasse a fortuna da velhice e aqui as coisas mudaram radicalmente para
melhor. Já octogenária, mamãe tornou-se uma pessoa extremamente amável, alegre,
receptiva, um amorzinho! Era muito comum ouvir dela: “Boazinha de coração!”, seja
para filha ou filho. Perguntado quem era ‘boazinha de coração’, ela respondia: “Você
mesmo!!!”
Então foi aquela mulher, já
anciã, que me fez ver que a doença não nos afasta da bondade. Os tempos mais
felizes vividos por minha mãe poderão ter sido esses dois últimos anos. Viúva,
acamada, usando oxigênio e se alimentando precariamente por uma mamadeira,
mamãe foi cuidada como um nenê, mas se comportou como um ‘bebê feliz’. Ela era
tão carinhosa, que bastava passar pelo quarto ou se sentar por alguns segundos
ao seu lado – eu disse ‘segundos’, não ‘minutos’,
que ela já estendia a mão e dizia “Deus abençoe!”. Essa era a maneira tão
peculiar com que mamãe nos agradecia, seja por um alimento, um pouco de água,
um aperto de mão ou um olhar.
De todas as lições deixadas pela minha
mãe, a mais eloquente é a ‘gratidão’.
FILIPE
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