quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

AIRTON

Eu não me lembrava do nome dele, embora o conhecesse há muitos anos, desde os tempos em que a biblioteca da cidade funcionava aos sábados, quando sempre nos víamos de relance. Naquela ocasião, estava ele sempre afundado nas leituras enquanto eu apenas ciscava os jornais. Nossos cumprimentos eram magros: um meneio de cabeça, um até mais e só.

Certa vez nos encontramos na rua e percebi que era um homem simpático, gostava de conversar. Eu estava construindo, ele passou em frente à obra e quis trocar ideias, porque também estava fazendo sua casa. Tempos depois, reencontrei-o e perguntei o motivo por que não voltara à biblioteca. “Não tenho mais tempo”, respondeu.

Noutra vez o vi atravessando a rua com umas sacolas, apressado, despenteado e ainda assim o abordei. "E aí, tudo bem? Como vão as coisas, tem ido à biblioteca?” Àquela altura, a biblioteca não abria mais aos sábados e eu, há tempos, deixara de frequentá-la. Ele me disse: “Estou cuidando de meus pais e fico sem tempo para ir lá”. Soube, então, que era ele quem dava comida, banho e punha seu papai e sua mamãe para dormir.

Dia desses, bem cedinho, deparei-me com ele. Não diria que estivesse bem penteado, porque uma calva ocupava todo aquele espaço nobre do coco. Caminhava devagar, quem tinha pressa era eu. Parei e perguntei: “Como vão seus pais?...” Ele apontou para o alto. “O quê?! Eles partiram?...” “Sim, no ano passado. Minha mãe foi em junho e meu pai no final de dezembro.” Na falta do que dizer, arrisquei: “Somente Deus poderá lhe recompensar pelo que fez.” “Não fiz nada além da minha obrigação”, respondeu convicto.

Eu não conheci os pais dele, portanto não havia motivo para que eu ficasse tão perturbado. Mas o apreço que tinha por eles e os cuidados intensos me comoviam. Ele se desligou de um escritório, onde trabalhava, para uma dedicação integral aos velhos quando sua enfermidade agravou. “Meus pais cuidaram de mim, me deram a vida. Tudo que fiz não é nem um tiquinho do que fizeram por mim. Quantas noites minha mãe e meu pai ficaram sem dormir por minha causa?... Disso eu não me lembro, pois era bebê. Agora eu tive a oportunidade de fazer esse pouquinho por eles”, disse-me. “Qual é seu nome mesmo?”, perguntei envergonhado. “Airton”, respondeu. “Então, Airton, vou pô-lo nas minhas preces.” “Reze pelos meus pais!” “Rezarei por eles também”, respondi, sem muita certeza de cumprir a promessa. “E agora, o que pretende fazer, vai voltar a trabalhar?” “Ah, sim, estou dando um tempo para ver o que faço. Mas pretendo voltar para o escritório. Vou descansar um pouco e depois vejo isso.”

Mas aquela expressão de leveza, do dever cumprido, muito me impressionou. Depois disso, continuei minha apressada caminhada enquanto o Airton seguiu lento o seu caminho. Levava consigo a ‘imperecível coroa dos justos’ de quem ‘combateu o bom combate’. Tinha ele a serenidade de quem cumpriu fielmente a suprema obrigação de cuidar dos pais.

FILIPE


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